Cadê a mulher que estava aqui?

Logo que terminei o curso de Jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco, fiz vestibular de novo e comecei a estudar História. Acabei abandonado o curso depois de dois anos, mas uma coisa eu aprendi e levei pro resto da vida: pode parecer paradoxal, mas a ciência que tem o passado como matéria-prima é, na realidade, um testemunho sobre o presente. Aquilo que consideramos importante no hoje é que define como vamos entender e interpretar fatos históricos. Nesse sentido, não surpreende a quantidade de publicações que buscam, no hoje, reescrever narrativas para dar visibilidade a mulheres cujas vidas e obras foram jogadas pra debaixo do tapete .

Uma dessas publicações recentes é o Pequeno guia de incríveis artistas mulheres que sempre foram consideradas menos importantes que seus maridos, da paulista Beatriz Calil (editora Urutau), selecionado pelo Leia Mulheres e enviado pelo Garimpo Clube do Livro. Beatriz é artista visual e o livro é mais um objeto de provocação do que resultado de pretensões literárias ou de pesquisa histórica. Com apenas 58 páginas, ele funciona como aquela incômoda topada que te faz lembrar da existência do dedão.

Calil escreve minibiografias de 16 artistas de várias nacionalidades cujas obras foram consideradas menores diante daquelas de seus maridos mais famosos. Cada biografia é acompanhada de uma fotografia do casal manipulada para que homem desapareça sob uma mancha branca. Aplicada sobre a foto, a legenda em letra cursiva é outra provocação: em vez do clássico (e machista) fulano de tal e senhora, as mulheres é que são nomeadas; os homens viram apenas os maridos sem identificação. Mais do que revanchismo, uma forma irreverente de provocar incômodo.

Por traz de todas as histórias há relatos de relacionamentos abusivos, quando não francamente violentos. Em pelo menos três casos ocorre a apropriação descarada, pelos homens, de obras realizadas por suas companheiras. É o que acontece com Camille Claudel, sobre quem se especula abertamente ser a autora de muitas das esculturas geniais atribuídas ao seu amante Auguste Rodin. Camille foi levada à força em um manicômio e mantida internada contra os diagnósticos médicos por mais de 30 anos, completamente isolada do mundo exterior.

Da mesma forma, muitos dos ensaios de moda atribuídos ao fotógrafo Man Ray foram feitos por sua companheira Lee Miller, que assumia o serviço para ele pudesse se dedicar a um trabalho mais autoral. Mais grave é o caso de Margaret Keane, mantida trancada em casa pelo marido Walter Keane, que assinava descaradamente as telas feitas pela mulher.

Beatriz Calil também pontua outras formas de violência, mais sutis, contra as artistas mulheres. Elaine de Koonig e Lee Krasner, assinavam apenas suas iniciais para evitar que suas obras fossem consideradas menores em função de seus prenomes femininos. Sendo comumente referidas apenas como esposas de Willem de Koonig e de Jackson Pollock, respectivamente, as duas estavam suficientemente escaldadas. [Para quem não lembra, problema semelhante levou Joanne Rowling a assinar como J.K. a série Harry Potter].

Yoko Ono, que tinha um consistente trabalho artístico muito antes de John Lennon entrar em sua vida, praticamente sumiu sob acusações de que teria sido o pivô da separação dos Beatles. Ainda viva e produzindo, ela recuperou parte de seu brilho próprio décadas após o assassinato de John. Entre as artistas biografadas, não por acaso Calil escolhe Frida Kahlo para encerrar seu livro. Hoje tida como ícone estético do feminismo, ela é a única do grupo cujo tempo ajudou a subverter a ordem ‘natural’ das coisas: por mais importante que tenha sido o trabalho de Diego Rivera, ele hoje é mais conhecido como o marido de Frida. Doce vingança.

A ideia de Calil não é exatamente original, e as últimas páginas do livro entregam de onde vem a inspiração: ao apresentar um levantamento das artistas mulheres representadas por galerias de arte de São Paulo ou que tiveram mostras individuais nos museus da cidade, ela adota os mesmos procedimentos das ativistas novaiorquinas Guerrilla Girls, que se notabilizaram exatamente por denunciar o machismo no mundo da arte. De toda forma, pouco importa. Taí uma voz que sempre precisa de coro.

 

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