A vida como performance

Outro dia me apareceu no Facebook o projeto de uma fotógrafa chinesa (acho) que começou a fazer retratos dela com o filho desde a gestação. O retrato do ano seguinte sempre tinha na parede do fundo o retrato anterior impresso, então à medida em que o tempo foi passando, as fotos se transforaram em fotos que continham fotos, que continham fotos das fotos, indefinidamente. Um pouco como aquela brincadeira de colocar um espelho na frente do outro e observar um infinito circular e autorreferente, até não se saber mais o que é imagem e o que é reflexo.

Tudo isso passou pela minha cabeça enquanto lia A um passo, livro de Elvira Vigna publicado originalmente em 1990 e republicado este ano pela Companhia das Letras. A despeito da trama, Vigna parece ter como meta causar desconcerto ao expor a vida como uma grande e incessante performance, em que até opiniões e sentimentos reais são teatralizados na relação com o outro. Um pouco como o famoso paradoxo de Fernando Pessoa sobre o poeta: se finge que é dor a dor que deveras sente, é fingimento ou dor?

Esse trecho é um exemplo da forma como a escritora expõe a vida performada:

A moça passa o pente no cabelo. O gringo tem a sensação de que ela não está passando o pente pelo cabelo mas representando uma cena onde deve passar o pente pelo cabelo. 

E esta performance não é apenas um ato consciente de pessoas, mas parece se reproduzir, por estranhos caminhos, na forma como os objetos mais variados e improváveis são reunidos para dar conta das necessidades humanas – sem que estes necessariamente percebam o fantástico que surge das gambiarras impensadas:

No lugar do aparelho de ar condicionado P. colocou então este cartaz que ele conseguiu sabe-se lá como e ele não percebeu, nem naquele dia nem nunca, a ironia: porque o cartaz era de Carlitos morrendo de frio. E o frio de Carlitos, que primeiro tinha sido de celulose e, depois, de papel representando a celulose, este frio então, que é a imagem da imagem de um frio, e que substitui o frio ausente de um ar condicionado inexistente, torna-se assim, de simulacro em simulacro, estranhamente concreto.

IMG_20180817_144442370Qual a história, afina? Gringo, que apesar do apelido é brasileiro e mulato, tem uma história mal resolvida com o rapaz P.. .Quando tenta encontrá-lo numa festa no apartamento de Evelyn (mãe de P.), Gringo conhece Tânia que, descobrimos depois, está lá não por acaso, para encontrá-lo a pedido da amiga Nina, com quem Gringo tem contas a acertar. Este seria o resumo da história mas, na real, a trama é quase irrelevante.

Diante dessa lupa colocada sobre coisas e pessoas com o sarcasmo de que poucos escritores são capazes mantendo tando a piada quanto a elegância, Elvira constrói uma narrativa que, poder-se-ia dizer, acaba ficando em segundo plano. Mais ou menos, na verdade. Pois a história colocada diz respeito a personagens que, levados por seus contextos particulares, são levados a performar suas existências num limite quase extremo, fazendo com que a relação entre eles seja, também grotescamente farsesca.

Gringo não é gringo; a ausência não é ausência, mas “presença ao contrário”; é a realidade que deve sofrer adaptações para se encaixar na imagem; o central é marginal. O jogo é sempre especular, infinito e aponta para uma conclusão radical: o mundo exterior é apenas invenção, a realidade existe apenas na intimidade de cada um, lugar inacessível e inalcançável.

No posfácio dessa edição, José Luiz Passos define o livro como “mescla de romance policial e distopia de comunidade fronteiriça”, e a aponta, ainda, que ele traz “uma reflexão admirável sobre o significado e a função da obra de arte”. Temporalmente, Passos relaciona o ano original de publicação – 1990, um ano após as primeiras eleições diretas pós ditadura militar – a uma história nacional que parece estar sempre a um passo de distância da democracia real, prevalecendo sempre os acordos do submundo.

A leitura exige atenção e entrega: entrei nesse livro meio distraída e acabei decidindo começar tudo de novo quando já ia lá pela página 50. Ainda bem, porque A um passo também é daqueles livros que ganham novas dimensões a cada denúncia.

PS: A foto em destaque é um par de negativos da exposição de Chichico Alckmin que rolou este ano no Instituto Moreira Sales, em São Paulo. O que é mais performático do que se postar conscientemente diante de uma câmara para tirar um retrato?

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