Faz umas semanas que terminamos de ver o seriado Sex Education na Netflix. Num dos últimos episódios da série, uma das personagens manda uma foto de sua perereca pro namorado; uma ‘amiga’ invade o celular da moça e envia a imagem para todo o grupo da escola, sem dizer de quem era. Caos, horror e balbúrdia (pra usar um termo em voga na educação brasileira): começa uma especulação coletiva sobre quem seria a dona da vagina.
Vagina. Vagina. Vagina. Vagina. Vagina. Vagina. Vagina. Vagina. Vagina. Vagina. Vagina. Vagina. Vagina. Vagina. Vagina. Vagina. Vagina. Vagina. Vagina. Vagina. Vagina. Vagina. Vagina. A palavra foi repetida umas quinhentas vezes no episódio.
O seriado vinha muito bem até então, tratando sexo na juventude de forma sarcástica, e honesta. O problema é que a porção externa do órgão sexual feminino responde pelo nome de vulva.
Alguém poderia argumentar que a série usou o termo que seria utilizado pelos adolescentes – beleza. Mas não houve uma, umazinha pálida tentativa de aproveitar a ocasião e, sem sair do tom, problematizar a confusão. Isso porque o título da série é ‘Educação sexual’ – imaginem aqui aquele emoji que tasca a palma da mão na cara em descrença.
O episódio me fez lembrar imediatamente dos quadrinhos A origem do mundo – uma história cultural da vagina ou a vulva vs. o patriarcado, da artista sueca Liv Strömquist. O álbum, publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 2018, faz um apanhado sensacional dos altos e baixos sobre o entendimento científico e socia da sexualidade feminina, num tom declaradamente feminista e incendiário.
Um dos capítulos mais interessantes trata justamente sobre como a nomenclatura dos órgãos sexuais da mulher são confundidos como parte de uma estrutura social que deliberadamente escanteia o corpo e o prazer femininos. Trocar vulva por vagina faz parte desse processo, que não é nem um pouco inocente. “A linguagem esconde o fato de que a genitália [feminina] possui partes externas”, diz a autora, citando (e desenhando) a psicóloga Harriet Lerner, que estuda especificamente esta questão.
Mas a questão vulva x vagina aparece mais pro meio da HQ de Strömquist, que desenha uma narrativa nada linear para construir essa história cultural da boceta. Ela começa questionando lugar de fala – embora não use esse termo – listando oito exemplos de homens que se interessaram um pouco demais por aquilo que se costuma chamar de “genitália feminina” (este é o título do primeiro capítulo): do inventor dos sucrilhos, que atribuía todas as doenças de mulheres ao “estímulo excessivo do clitóris”, a Santo Agostinho que, segundo ela, basicamente inventou a associação entre sexo e culpa; feminino e diabólico. O prazer feminino foi execrado de tal maneira no último milênio que não é mesmo de se espantar a total inapetência coletiva pra lidar com a questão até hoje, começando por dar o nome certo às coisas.
Strömquist faz uma HQ discursiva, em que a força narrativa está no texto composto graficamente, e não apenas como legenda – tanto que a Companhia das Letras digitalizou a caligrafia original da autora para usá-la como fonte na composição em Português. Os desenhos aqui não funcionam narrativamente, mas como reforço a esse texto. Muitas vezes, ela desenha os pesquisadores para que os textos de seus livros funcionem em primeira pessoa (em vez de “Jean-Paul Sartre disse que…”, é o próprio que enuncia sua fala em um balão).
Em vários momentos, a autora também utiliza fotografias e desenhos técnicos – como quando menciona a placa de alumínio desenhada com um homem e uma mulher, enviada pela NASA com a espaçonave Pioneer para eventualmente topar com extraterrestres. Enquanto o pênis aparece naturalmente, um pequeno traço entre as pernas da mulher, que representaria a vulva, foi apagado na versão do desenho mandada pro espaço. Diz a lenda, a simples sugestão de uma perereca desagradou a direção do órgão americano.
Nem sempre foi assim, ela faz questão de lembrar, ao retomar as representações da vulva no mundo antigo, quando o órgão sexual feminino era associado à fartura e ao sagrado. A arte figurativa comumente representava mulheres de pernas abertas e vulvas enormes, como um amuleto para trazer boa fortuna. Disso ao apagamento quase completo da vulva lá se vão de milhões de mulheres culpabilizadas e complexadas com seus orgasmos (ou falta de), a menstruação e o tamanho de seus órgãos sexuais. Não é de se espantar que hoje muitas tentem fazer cirurgia plástica para diminuir o tamanho dos lábios – claro, depois de trocentos anos ouvindo que ali deveria haver apenas um buraco…
A origem do mundo não é um primor artístico nem literário – e inclusive vi alguns problemas em suas argumentações, risco que assume qualquer um que parta para afirmações taxativas – mas é uma obra necessária para bater de frente contra uma visão de mundo nociva e praticamente incontestável. Nesse sentido, o seu trunfo está no formato HQ, ligeiro e didático sem perder a graça, capaz de apresentar um primeiro apanhado de saberes silenciados sobre o sexo feminino. A capa, além disso, é simplesmente maravilhosa. ❤
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