No hay, al principio, nada. Nada. Las calles mudas, desiertas, cocinándose al sol…
No hay, al principio, nada. De un lado el río liso, dorado, sin una sola arruga…
É assim, com essa frase que remete ao livro do Gênesis, que o escritor argentino Juan José inicia vários capítulos do romance Nadie, nada, nunca, repetindo quase à exaustão as palavras iniciais. Repetição, aliás, é a tônica desse livro instigante, inquietante e sufocante. Mas não pense que isso o torna enfadonho. Pelo contrário. O leitor, curioso, fica intrigado. Especialmente quando vai percebendo que a cada repetição um novo e muitas vezes sutil elemento é agregado à narrativa. É assim que vai se formando essa espiral narrativa.
À primeira vista, parece que Saer dá voltas no mesmo lugar. Pois nos primeiros capítulos efetivamente nada acontece. As mudanças mal são percebidas. Das primeiras páginas, talvez até ali pelo primeiro terço do livro, as pequenas alterações não mudam significativamente a trama. El Gato, o personagem principal, mora em uma casa branca à beira de um balneário nas margens do Rio Paraná (sim, aquele que começa no sudeste do Brasil e do qual o maltratado Tietê faz parte da bacia que deságua no Prata, lá em Buenos Aires – pense, paulistano: seu xixi, em último caso, passa diante do Puerto Madero). Naquela modorra, contempla a praia fluvial, em uma tórrida manhã de fevereiro, “el mes irreal”, na qual uns poucos banhistas tentam fugir de um calor desmesurado, acentuado por um período de seca atípica. Tudo está tomado por uma poeira compacta. As árvores, as casas, o caminho de terra até a praia, a ilha com sua vegetação esquálida.
Além de El Gato, que tem como meio de subsistência copiar endereços do guia telefônico para envelopes que serão usados como mala direta, temos Elisa, sua namorada, amante talvez, pois parece ter uma outra vida, com marido e filhos distantes. Tomatis, um amigo que o visita, repórter de um jornal da cidade vizinha, especializado em turfe e generalidades. E Ladeado, um misterioso visitante diário, torto, quase corcunda, que atravessa o rio de canoa para trazer forragem para o “bayo amarillo”, um cavalo que está ali sendo preparado para corridas. A descrição constante dessas travessias de canoa é magistral, aliás.
E então aquilo que parece um círculo começa a se tornar espiral. Ou, quem sabe, uma sucessão de círculos concêntricos que vão se espalhando pela superfície lisa da água depois que alguém joga uma pedra, ampliando a narrativa sem borrar sua forma circular. Há um momento em que Saer lança essa pedra ou desata a espiral, que aliás aparece no romance na figura de uma daquelas coisas fumegantes e mal cheirosas que usávamos nos anos passados para afugentar insetos. E as coisas começam a andar, mas longe de uma sucessão lógica e linear de acontecimentos.
O calor domina. A paisagem, apesar de toda a água do rio, é agreste. Plantas amareladas, pó seco nas ruas, a cada automóvel que passa, uma nuvem se ergue. Suor no corpo dos personagens, que começam a se multiplicar. O “bañero”, um antigo campeão de desafios de permanência na água que se torna zelador do balneário, vendo, dia a dia, as mesmas cenas de casais e crianças usando a pequena praia à beira rio. É quando começam os relatos dos crimes. Primeiro, uma sucessão de cavalos da região que são mortos a tiros e têm seu corpo mutilado. Uma investigação começa e tem como pivô Caballo (ok, não é nada sutil esse nome) o delegado da pequena cidade da província de Santa Fé onde se passa a trama. Conhecido por sua habilidade em torturar presos e lhes arrancar confissões, Caballo, que tem papel central no desfecho alucinante da trama e do crime capital de toda a história, aparece naquele momento em que o livro acelera, os fios da história vão se ligando e todas as voltas da espiral ganham sentido.
Até lá, El Gato e Elisa tomam muito vinho branco, muito mate, algumas taças de café, têm relações sexuais relatadas com detalhes, digamos, interessantes e diretos. O “bayo amarillo” é uma presença constante e muito marcante. Saer compõe a narrativa em uma toada que alterna a pasmaceira dos dias quentes daquele verão com os ciclos da natureza e algo do espírito animal daquele cavalo, que enfim vai escapar ileso do serial killer que age na região.
O escritor maneja com maestria a noção de tempo. O leitor nunca sabe se passam vários dias ou se aquilo tudo acontece apenas no intervalo de poucas horas. Até porque, toda a primeira parte do romance é narrada com idas e vindas em torno dos mesmos episódios. Quase tudo em terceira pessoa, até que Saer quebra uma frase, colocando uma misteriosa primeira pessoa, que pode ser qualquer um dos personagens. É uma brincadeira refinada, que exige atenção do leitor. Em muitas passagens você se pergunta se ali não teve um erro de edição ou uma brutal cagada do escritor. É quando você se dá conta da intencionalidade das mudanças.
Pode-se se dizer que esse é um romance do “sertão argentino”. Localizada entre as províncias de Santa Fé e Entre Ríos, na porção norte do país, já perto de Brasil, Uruguai e Paraguai, a região tem seu grande rio, como o nordeste brasileiro tem o São Francisco da foto que ilustra o post. Imensidões sem fim, pequenas cidades, um tipo de violência próprio dos rincões latino-americanos. É um retrato do nosso pobre continente.
Até então, havia lido apenas um livro de Saer, chamado A ocasião. E o impacto foi muito forte. Agora, preciso ir mais além e me aprofundar na obra. Até porque descobri que entre muitas brincadeiras narrativas, ele costumava duplicar seus personagens em vários romances, como é o caso de Tomatis, que aparece em outras histórias.
Não achei referências de que Nadie, nada, nunca tenha sido traduzido para o português, o que é uma lástima, que já retratei neste post. Li a edição para Kindle, da Rayo Verde, uma editora de Barcelona, que está disponível por módicos R$ 25,90. O romance A ocasião foi publicado no Brasil pela Companhia das Letras e pode ser uma boa maneira de entrar na obra do argentino.
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