Comprei Glaxo na Feira do Livro da Unesp pela capa, como já fiz em muitas ocasiões, atraído pelo design, por detalhes gráficos ou pelo título do livro. Neste caso, o nome e o detalhe de um cartaz de filme de faroeste foram decisivos. Também fiz a compra movido pela curiosidade de conhecer a obra de Hernán Ronsino, escritor argentino de quem, confesso, jamais tinha ouvido falar. Mais um capítulo do imenso desconhecimento que temos sobre os autores e autoras dos nossos países vizinhos, muitos dos quais jamais serão publicados no Brasil. Mas no caso de Ronsino, um jovem professor de sociologia, sua obra chegou a nós em 2017 pela Editora 34, em ótima tradução de Livia Deorsola.
A leitura de Glaxo começa por um desmonte do que se espera da literatura argentina desde o boom dos anos 50 e 60, ou seja, uma prosa essencialmente urbana e, sobretudo, portenha, embora haja exceções, como a obra de Juan José Saer, de quem resenhei Nadie, nada, nunca e li, em tempos remotos, o excelente A ocasião. Saer foi um autor que ambientou parte significativa de sua obra na imensidão do interior argentino, enquanto seus colegas de geração situavam suas narrativas nos cafés, bares e ruas de Buenos Aires. Pois Ronsino, assim como Selva Amada, são autores de uma nova geração que buscam pontos de contato com a Argentina profunda dos pampas e das imensas planícies do Sul. E no caso de Glaxo, são evidentes as marcas da influência de Saer na linguagem do jovem escritor.
Ronsino nasceu em Chivilcoy, pequena cidade na província de Buenos Aires. E embora já habite a capital há muitos anos, onde leciona sociologia, escolheu a região nativa para ambientar o romance. Em um cidade industrial, onde impera o prédio da Glaxo, a vida é mediada pelos turnos dos operários das muitas fábricas e pelos horários dos trens que passam rumo à capital. São quatro capítulos, cada um deles contado por um homem diferente em tempos distintos. A narrativa começa em 1973, quando a Argentina mergulhava para o abismo de mais uma ditadura militar, salta para 1984, um ano após a redemocratização, regride a 1966 e é encerrada pelo personagem de 1959.
Vandermann, Bicho Souza, Miguelito Barrios e Folcada são os nomes deles. Embora distantes no tempo, existem pontos de contato entre todos, em uma trama que mistura violência, desalento, traição e vingança. É marcante a presença do cinema da cidade e das incontáveis sessões do faroeste Last train from Gun Hill, que dá à região descrita por Ronsino um toque de velho oeste. Uma terra sem lei, simbolizada por um personagem valentão e militarista com passado obscuro de perseguição e morte de opositores do regime e um único vacilo que marcaria sua vida.
O interior argentino descrito pelo autor é desolado, árido como a linguagem seca e a narrativa curta desse romance quase novela, ou novela quase romance. Em dado momento, a ferrovia vai ser removida para dar lugar a um estrada, que promete uma modernidade que nunca vem. Da barbearia situada diante da imensa fábrica da Glaxo, um dos personagens assiste à passagem do tempo revelando uma cidade sem perspectivas, desconectada do espetáculo do mundo, que aparece de relance nas viagens feitas a Buenos Aires. É quando ele observa que “o matagal já não existe, foi desfeito, e por onde passavam os trilhos, agora há um caminho novo, uma diagonal, que mais parece uma ferida costurada. Esse caminho parece, então, a recordação de um talho, irremediável, na terra.”
Hernán Ronsino criou uma colcha de retalhos narrativos muito hábil. Diversas pontas vão ficando soltas para que o leitor interprete e imagine a sequência de acontecimentos. Outras são atadas na sequência final, deixando mais dúvidas do que respostas, o que também é uma das qualidades do livro.
Glaxo tem passagens de extrema violência. É um livro centrado em homens rudes, em um universo hostil às mulheres, que aparecem sempre em situações violentas ou sujeitas a disputas grosseiras entre machos em um ambiente melancólico, no qual o tempo parece suspenso no ar como a poeira dos campos e das chaminés das fábricas que tomam conta da pequena cidade.
Que venham mais romances e contos de Hernán Ronsino.
Um comentário sobre “Solidão, violência e melancolia na imensidão dos pampas”