Diário de uma narradora incomum

As artes ficcionais têm na empatia seu maior capital: atraem e emocionam pela capacidade de gerar ligação com os personagens e suas trajetórias, sejam essas semelhantes ou totalmente diferentes das nossas. Isso acontece até mesmo com aqueles não necessariamente imbuídos de sentimentos puros – os anti-heróis (a-do-ro!). Mas e quando o personagem nos gera estranhamento, desconforto ou até repulsa?

Esta é uma aposta arriscada, mas feita pela escritora Cássia Penteado em seu romance Entremeios, publicado em 2018 pela editora Reformatório. A personagem principal é uma artista plástica que vive entre seu ateliê em São Paulo, uma fazenda herdada do pai no interior e viagens por todo o mundo para vernissages, jantares e outros compromissos sociais. Tem um namorado pianista que mora em Nova Iorque, e que encontra esporadicamente em países diferentes, quando é possível conciliar a agenda de ambos.

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Entremeios é escrito à maneira de um diário, com a própria personagem-narradora fazendo o registro de seu dia a dia. Nota-se que ela trafega o mundo com uma certa melancolia difusa. Observadora sagaz, ela também é uma juíza implacável do outro. Está perdida (quem nunca), mas se esquiva de qualquer possibilidade de simpatia pela forma um tanto pedante como se expressa. Assim, faz com que suas angústias pareçam apenas um punhado de white people’s problems. Rica, reconhecida, bem sucedida, viajada… qual o problema dessa moça?

Existe um. E a forma como ele aparece é surpreendente.

Logo no começo da história, a personagem presencia um assassinato na calçada de um hospital quando descobre que tem um problema medianamente grave de saúde. Mais do que a morte, a visão do sangue vermelho banhando a calçada é o gatilho para que um evento traumático do passado vá surgindo aos poucos, na memória e também nas atitudes da artista, cada vez mais estranhas. Em dado momento, percebemos que ela não está só.

A partir daqui, é um tanto difícil continuar a resenha sem fazer spoilers fatais – e nesse caso, acho mesmo que nesse caso não é só frescura da blogueira, pois há surpresa que vai se construindo aos poucos ao longo da história. Se para bom entendedor, meia palavra basta, tudo o que precisa ser dito está na epígrafe, emprestada de Mário de Andrade: “Eu sou trezentos, trezentos e cinquenta / Mas um dia afinal eu toparei comigo…

Entremeios começa desafiando o impulso demasiadamente humano da rotulação, mas se firma como algo entre o drama psicológico com requintes de romance noir. A história vai escalando em violência ao mesmo tempo em que o tom deslocado da narradora é mantido – em alguns momentos, sangue ou tinta vermelha parecem ser apenas dois materiais possíveis para a representação de uma (alguma) realidade, para provocar uma (alguma) emoção. É um daqueles livros que deixa o leitor confuso e vai ganhando-o aos poucos, até que este fica enredado o suficiente para não largar o livro até o final.

Para dar um gostinho, segue um dos meus trechos preferidos:

“Observo o rosto das mulheres nas recepções, nos vernissages, nos restaurantes.
Por vezes, fingo ouvir o que dizem encarando seus olhos oblongos, devido ao peso da pele solta, apoiados em gordas bolsas tingidas de bege claro, inaugurando tons de olheiras. As laterais de suas faces pingam no decorrer dos anos e fazem brotar novos queixos, estalactites. O tempo esculpe cavidades naturais, subcutâneas; põe a boca entre parênteses, e finca estacas sobre os lábios, por onde se perde o batom. Rachaduras e teias brotam dos cantos dos olhos. Um subsolo constrói-se abaixo do queixo, ocultando o início do pescoço frouxo, com descansos horizontais expostos em camadas sem arestas como as rochas limadas pelo tempo e pelas águas. Muitas voltas de colar de fio fino cobrem-lhe o peito.”

Gostou? O livro está à venda no site da editora Reformatório.

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