A caetaneada de Igiaba Scego

Tempos estranhos esses que vivemos. E bote estranhos nisso. Um exemplo é a demonização da arte, promovida pela patrulha ideológica de certos movimentos da extrema direita brasileira, que veio à tona pelos grupos de WhatsApp, nos posts do Twitter e na Internet profunda, disseminando o ódio aos artistas e a seus públicos. E não por uma questão de gosto, que este se discute sim. É um ódio a priori, visivelmente destinado a atingir a produção de músicos, artistas plásticos, grupos teatrais, companhias de dança, escritores, sem contar o mundo da ciência, colocado em um patamar ainda mais demoníaco do que a arte. Onde há qualquer sinal de inteligência e problematização das grandes questões da sociedade brasileira, haverá quem lance a pecha de comunistas e aproveitadores da lei “ruanê”. Dito isto, faço um alerta. Se você não gosta de Caetano Veloso, ou, pior, se o detesta, melhor parar a leitura aqui.

E não afirmo que todos têm de gostar de Caetano. Conheço gente muito bacana, antenada em cultura, que não gosta. Assim como não gosto de Djavan, por exemplo. Mas foi justamente deste último que tomei o já surrado neologismo “caetanear”, presente na canção Sina, composta em 1982, para dar o título a esta resenha que, enfim, trata de Caminhando contra o vento um pequeno e delicioso livro da italiana Igiaba Scego que homenageia nosso cantor, compositor, por vezes escritor, cineasta bissexto e sempre um polemista.

Caminhando contra o ventoRecomendo demais a leitura, que se faz praticamente de uma sentada. Prepare-se para altas doses de tietagem literária, uma babação de ovo mesmo, para usar o bom português. Mas em meio a muita admiração, afeto e amor pelo nosso artista, Igiaba constrói um relato emocionante e emotivo de como a obra de Caetano entrou em sua vida. E, ali instalada, jamais se retirou, a ponto de motivar esse texto que podemos chamar de ensaio, misturado com um quê de memória e com doses de contextos históricos, culturais e políticos que formaram a escritora.

Agora, pense: o que levou uma jovem italiana, moradora de Roma, negra, filha de refugiados Somali, a se interessar por um cantor do Terceiro Mundo em plena virada dos anos 80 para os 90? Tá, a música brasileira tem lá seus adeptos, e muitos, mundo afora. Chico Buarque, exilado na Itália, abriu caminhos para a MPB por aquelas plagas. Mas Igiaba confessa que não tinha muitas referências do que era esse cancioneiro. Estudava literatura, sabia algo de Machado, Rosa, Drummond. E eis que ao trabalhar em uma loja de discos deparou-se com a capa de Cores, nomes, um dos álbuns mais populares da carreira de Caetano. Tem Sina, a tal canção homenagem de Djavan, que tocou muito por aqueles tempos, tem Trem das Cores¸ Meu bem, meu mal e, principalmente, Sonhos, canção de Peninha que estourou e é executada por 11 em cada dez cantores de barzinho de Paraty.

Igiaba parou para ouvir e nunca mais deixou de se conectar a Caetano. E é isso que ela vai nos contando, com frases incríveis, dizendo ao leitor que o baiano “salvou sua vida”, embalou seus amores, a consolou nas decepções com os homens, acompanhou sua tristeza e, principalmente, foi para ela a “bolsa de Mary Poppins”, pois, “daquela bolsa mágica, a babá perfeita tira autênticas maravilhas: um cabideiro, um espelho, um rouxinol. E Caetano faz a mesma coisa.” Caetano passou a iluminar a vida da jovem romana. Essa é uma pequena mostra de como ela foi tocada pela música. E foi além.

A autora nos conta como foi entrando na vida de Caetano. Revela saber tudo sobre Dona Canô, ama Paula Lavigne (!), conhece os parceiros, Gil, em especial, claro, ama Betânia e Gal (por quê será?) sabe de cor a trajetória de sua carreira, as incursões do artista em outras artes, seus anos de formação, as influências. Tem informações que na maioria dos casos são públicas. Entrevistas, biografias, referências jornalísticas, trabalhos acadêmicos. Mas as maneja com perícia, o que faz muito fã de carteirinha de Veloso ficar no chinelo.

Ela começa o relato pela famosa foto em que Caetano aparece no camarim, ao lado de Carla Perez e Xandy, apenas de cueca. Vocês se lembram o quanto essa imagem correu o mundo virtual, mostrando um senhor de 70 e poucos anos ainda em forma. Pois essa foto, é claro, chegou à italiana, já então devota do mestre baiano. Ela parte daí para ir fazendo uma viagem pelo tempo e pela obra do seu ídolo. E vai nos presenteando com aquilo que me foi mais marcante na leitura. A visão de uma estrangeira sobre um dos nossos grandes artistas. Carregada de paixão, mas também com um olhar aguçado para canções pouco conhecidas entre nós, como a belíssima Peter Gast, conexões com momentos políticos importantes, como a ditadura, que levou Caetano à prisão e ao exílio, seus posicionamentos um tanto abertos e díspares durante a redemocratização e seus embates com a esquerda e suas idiossincrasias.

Sem contar as análises de letras incríveis, como a de Reconvexo, que começa citando sua cidade, no verso “Sou a chuva que lança areia do Saara sobre os automóveis de Roma”, o que, é claro, causa forte comoção. Mesmo em um texto tão curto e sem pretensão de ser uma crítica musical, Scego revela matizes diversos da obra do artista.

Nesses tempos bicudos Caminhando contra o vento é um refresco para dar um gás em nossa autoestima. Vale a leitura. E aposto que você vai correr para tirar os CDs da poeira e revisitar a obra de Caetano. E se não tem mais CD, tá aí o mundo virtual com as playlists que não nos deixam na mão.

A edição brasileira, muito bem traduzida por Francesca Cricelli, foi uma parceria das editoras Nós e Buzz. São pouco mais de 100 páginas de puro deleite. E se você quer conhecer algo  sobre a literatura de Igiaba Scego, o Lombada já resenhou aqui Minha casa é onde estou. Boa leitura e bons sons!

P.S.: fiz a foto em destaque em dezembro de 2018, no show Ofertório, que Caetano tem feito por aí com seus filhos Moreno, Tom e Zeca. O cenário, lindo, é de Hélio Eichbauer.

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