O conceito de justiça é uma das matérias mais antigas da literatura. Aparece como tema central de alguns dos milenares mitos greco-romanos além de peças de teatro da antiguidade que sobreviveram até os dias de hoje. Isso porque se trata de uma questão intimamente ligada à ética nas relações entre pessoas e entre indivíduos e coletividades, sendo motivo de algumas das inquietações mais fundamentais do ser humano. Muito antes do Direito existir, a humanidade já buscava justiça como um ideal de equilíbrio e discutia filosófica e pragmaticamente quais deveriam ser as suas bases.
Em vez de apaziguar as inquietações, o posterior surgimento do Direito e das leis aprofundou estas discussões, que mais uma vez perpassaram a literatura. Alguns dos clássicos mais conhecidos e queridos do mundo se dedicam a problematizar a discrepância entre a justiça ética e a justiça legal, muitas vezes colocadas em campos diametralmente opostos, por interesses ligados à política, ao poder econômico, a desigualdades sociais ou a uma ideia específica de moralidade, para ficar em algumas. Sobre esse último ponto, não é demais lembrar que o mundo muda e as leis e o entendimento jurídico devem (ou deveriam) mudar com ele. Na prática, os costumes são mais rápidos do que o aparato legal consegue acompanhar – vide as decisões recentes sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo.
A própria democracia está fundada sob uma ideia de justiça mediada pelo Estado e pela divisão de poderes; por um sistema de pesos e contrapesos que, em tese, deveria garantir a equidade de todos os seres humanos perante a Lei, assim como a isenção do aparato administrativo e jurídico por trás das engrenagens legais. Não por acaso, a representação corrente da Justiça é a de uma deusa vendada que segura a espada numa mão e uma balança na outra – a simbologia não poderia ser mais direta: a Lei deve ser aplicada sem distinção de qualquer natureza, após um julgamento isento, fundado no equilíbrio de oportunidades entre as partes interessadas. A neutralidade do juiz é elemento central desse equilíbrio, assim como a atenção aos procedimentos jurídicos estabelecidos. Virou lugar comum atacar a burocracia como um mal, mas é sempre bom lembrar: ela é (ou deveria ser) a garantia de que os caminhos de um processo serão iguais para todos.
Obviamente, tanto o ideal ético de justiça quanto o estado democrático de direito são lindos no papel, mas tão sujeitos a falhas e torções deliberadas quanto qualquer coisa que envolva seres humanos (ou peopleware, como diria um antigo chefe meu). E é justamente no potencial dessas fissuras que está o convite à criação literária.
Enquanto espero a pipoca ficar pronta para a próxima leva de publicações do site The Intercept sobre a conduta do então juiz federal Sérgio Moro na Operação Lava-Jato, fiquei aqui relembrando livros ou trechos de livros que problematizam questões relacionadas à justiça. Seguem alguns como sugestão de leitura, inclusive pro eminente ministro de Maringá. Sei que ele tem uma confessa predileção por biografias mas, infelizmente, não consegui pensar em uma para incluir aqui. Como ele também não lembra de nenhuma que tenha lido nos últimos meses, sei que vai me perdoar.
1. Antígona, de Sófocles (domínio público)
Uma das mais belas obras de todos os tempos, a peça vai ao cerne do embate entre o legal e o ético. Antígona tem dois irmãos que lutam em lados opostos de uma guerra; um deles morre em combate, justamente o que estava do lado dos perdedores. Por ordem do rei vencedor, seu corpo deveria ser deixado para apodrecer ao relento. Mas Antígona sente que tem o dever moral de enterrar seu irmão e lutará até o fim para fazê-lo. Ponto fundamental é que Antígona não discute a legitimidade da Lei exarada pela vontade real, mas está disposta a arcar com as consequências de desobedecê-la para fazer o que julga correto. Muitas vezes no curso da história, Leis foram modificadas a partir de atos de desobediência civil como o praticado por Antígona; essas pontas-de-lança fatalmente pagam o custo de iluminar estas falhas na legislação vigente, justamente infringindo-as.
2. Alice no País das Maravilhas, de Lewis Caroll (Zahar)
Um dos meus livros preferidos de toda a vida é esta obra-prima do non sense. Por mais absurdas que sejam as situações pelas quais Alice passa nessa terra fantástica, o livro está coalhado de discussões de fundo lógico e filosófico – e uma delas envolve um poema genial no capítulo três, quando Alice se encontra em meio a um grupo de animais falantes, dentre eles um camundongo que acabara de conhecer enquanto nadava pra fora de uma lagoa. Alice observa a conversa errática dos animais quando pede que o camundongo lhe conte sua história, que vem em forma de versos incomuns (aqui na excelente tradução de Maria Luiza X. de A. Borges):
Fúria, entendiada, resolve que vai julgar o camundongo sem motivo algum, só pra se divertir – e na falta de um tribunal constituído, ela mesma fará simultaneamente os papeis de acusadora, juíza e júri. O fim desta querela já está definida antes mesmo de o caso ser posto de pé. Sem chance alguma de absolvição, Camundongo foge em desabalada carreira (certo ele).
3. Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa (Companhia das Letras)
Uma das definições possíveis para Sertão é o espaço onde impera o vazio de autoridade legal. Sendo assim, vigem leis não escritas baseadas nas práticas locais de poder, num constante jogo de equilíbrio e desequilíbrio entre dinheiro, política e, principalmente, violência. Uma das cenas mais poderosas do livro é o julgamento de Zé Bebelo, fazendeiro com pretensões políticas que junta um punhado de homens com o objetivo de acabar com a jagunçagem nas Gerais. Capturado em batalha pelo bando do rival Joca Ramiro, Zé Bebelo tem direito a um julgamento no qual seus atos são avaliados por quatro sub-chefes inimigos, e no qual ele próprio tem a oportunidade de falar em sua defesa. A beleza desta cena é justamente como esse tribunal improvisado se desenrola sob uma ética muito própria, porém compartilhada por todos. Se todos os jagunços entraram nessa vida dispostos à guerra, porque Zé Bebelo deveria ser condenado por ter escolhido guerrear com eles? – esse é o argumento vencedor que garante a vida e a liberdade ao fazendeiro. Mas nem tudo são flores: Hermógenes, um dos sub-chefes, discorda da sentença e mata Joca Ramiro traiçoeiramente. Essa desavença de fundo “legal” é que move todo a ação do romance, até culminar em seu final trágico para Diadorim.
4. O processo, de Franz Kafka
Joseph K. acorda numa manhã igual a todas as outras para descobrir que responde a um processo incompreensível a respeito de um crime não especificado. Todo o romance é construído em torno do labirinto burocrático que cerca K., e ele irá atravessá-lo – ou melhor, será levado através dele – sem jamais saber porque está sendo processado. E obviamente, sem informação não há chance de defesa. Se hoje kafkiano é um adjetivo atribuído à burocracia irracional, a razão é este romance espetacular (e não o salgado árabe cafta, como mencionou o ministro da Educação). Muita gente usa O processo para atacar a existência dos procedimentos burocráticos; eu o vejo de outra forma: ele é uma crítica àqueles que, por comodidade, interesses pessoais ou sadismo, usa a burocracia como um fim em si mesma para escamotear aquilo que ela deveria proteger – a justiça. Ao fim e ao cabo, o Estado é apenas uma abstração; ele é feito de pessoas (de novo, peopleware). Obviamente, usar a burocracia para travar ou atrasar processos é uma prática corrente hoje no sistema de justiça, uma que revela também como a desigualdade social afeta as chances de defesa dos indivíduos. Quem pode pagar advogados bem preparados tem mais chances de usar toda a burocracia a seu favor. Minha edição é em alemão da Anaconda, mas tem várias rodando por aí em português. (A foto acima é do sebo Desculpe a Poeira).
5. O sol é para todos, de Harper Lee (José Olympio)
O romance mais famoso da escritora americana ataca frontalmente uma justiça incapaz de se blindar contra o preconceito da comunidade a sua volta. A história se passa no começo do século passado, quando um advogado da pequena cidade americana de Maycomb é convocado para defender um rapaz negro, acusado de estuprar uma jovem branca. Todas as provas e testemunhas apontam para a inocência do rapaz, mas a cor de sua pele, no Sul dos Estados Unidos, determina sua culpa antes mesmo de o julgamento começar. O livro é narrado pela filha do advogado, então uma criança, o que contrapõe o tema bastante complexo a uma certa lógica infantil e, por isso mesmo implacável, por meio da qual são exacerbadas as contradições da coisa toda. Atticus Finch, o advogado, fará de tudo o que está ao seu alcance dentro do sistema legal para defender o seu cliente. Mas, julgado por um júri comunitário altamente racista, o rapaz terá chances quase nulas de escapar ao processo. O processo legal aqui é apenas um teatro para validar uma condenação já decidida socialmente. O sol é para todos mostra, sobretudo, que a justiça só pode ser tão boa – ou tão ruim – quanto a sociedade na qual está inserida.
6. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, de Hannah Arendt
Este ensaio da filósofa alemã e judia é uma obra-prima sobre justiça e direito; um texto corajoso, que a colocou na berlinda ao longo de toda a década de 1960. Hannah foi escalada pela revista The New Yorker para cobrir em Jerusalém o longo julgamento de Adolf Eichmann, o oficial nazista responsável pela emigração forçada de judeus para fora dos territórios dominados pela Alemanha antes e durante a Segunda Guerra Mundial; depois, pelo seu transporte para campos de concentração e extermínio. Num recém-criado estado de Israel, a expectativa de todos – a começar do primeiro ministro Ben Gurion – é de que este julgamento representasse simbolicamente a condenação exemplar de todo o tratamento dispensado pelo regime nazista aos judeus. Acabou transformado num espetáculo, desde o sequestro de Eichmann em Buenos Aires ao desfile interminável de testemunhas chamadas a compor o “quadro geral” do holocausto. A filósofa explora os problemas morais, políticos e legais trazidos à baila por este julgamento sem, no entanto, diminuir a grandiosidade do extermínio. Da forma como foi concebida, a corte dava a “ilusão de que algo absolutamente sem precedentes podia ser julgado de acordo com precedentes e seus padrões”, pontua. No entanto, uma vez que este padrão estava estabelecido, não cumpri-lo gerava uma contradição ética. Hannah foi criticada por lembrar, incomodamente, que o julgamento deveria se ater aos atos praticados por Eichmann, e não a um desejo difuso de vingança; que o processo não deu ao acusado condições plenas de defesa; que uma corte criminal existe para determinar a culpa ou inocência de indivíduos com base nas provas produzidas no âmbito do processo e que podem ser diretamente ligadas àquele indivíduo. No fim, Eichmann foi condenado à morte – como seria de qualquer forma, mesmo que o processo tivesse se atido efetivamente a seus atos. A meu ver, Arendt alerta para a caixa de pandora ética que se abre quando o pacto de justiça é quebrado. Essa é uma das questões trazidas à tona pelo livro, que recomendo inclusive por seu relato sobre como o estabelecimento de uma burocracia administrativa e de uma orientação de linguagem cuidadosa possibilitaram a realização do Holocausto sem que o assassinato em massa se colocasse como uma questão moral na cabeça da população alemã.
7. A pena e a lei, de Ariano Suassuna (Nova Fronteira)
Julgamentos são comuns na obra de Ariano Suassuna – basta lembrar do final de sua peça mais famosa, O auto da Compadecida, em que os personagens morrem e são julgados por Jesus Cristo em pessoa (um Jesus negro, inclusive), tendo Maria como advogada de defesa. Em A pena e a Lei, Ariano juntou três peças escritas em momentos diferentes, adaptando-as pra que tivessem uma ligação, sendo o segundo ato mais diretamente ligado à questão da Justiça. Tudo começa por causa de um novilho roubado e um fazendeiro que prontamente acusa um dos seus vaqueiros. O fazendeiro vai dar parte na delegacia de Taperoá e é então que Ariano explora os caminhos tortuosos de um combalido sistema legal movido a subornos e conchavos. É de bolar de rir, justamente porquê trágico. O Blog Página Cinco fez uma excelente análise desta peça à luz das denúncias do The Intercept. Aqui vai um trecho:
“O que move a história de “A Pena e a Lei” é a moral maleável que norteia a tentativa de se fazer justiça onde um sistema jurídico não existe. É uma ideia de justiça que não questiona arbitrariedades ou parcialidades e tem fé de que talvez uma injustiça possa ser compensada por alguma outra injustiça, o que resulta numa justiça torpe, mas, no final das contas, justa – o famoso fazer o certo por linhas tortas.”
8. Justiça: o que é fazer a coisa certa, de Michael Sandel (Civilização Brasileira)
Este livro é a base para um famoso curso sobre filosofia e justiça disponível gratuitamente pela plataforma de educação à distância da Universidade de Harvard. No curso – como no livro, o professor Michael Sandel passeia por todos os conceitos que nortearam a ideia de Justiça ao longo da história humana, mostrando como esses conceitos foram se transformando ao longo do tempo, todos, evidentemente, sujeitos a suas próprias contradições internas. As aulas são espetaculares: instigando os alunos a resolver situações reais com base no que acreditam ser mais justo, Sandel vai mostrando na prática os caminhos da ética na cabeça dos indivíduos e como a noção de justiça passa inevitavelmente por um pacto coletivo. Numa das aulas mais emblemáticas, ele põe o sistema de cotas raciais em discussão. O debate sensacional, e para terminar este post dando uma canja, aqui vai o link deste episódio com legendas em português:
DICA PROS MINISTROS E GOVERNADORES: fazendo o curso todinho (que inclui umas provinhas), sai até diploma oficial de Harvard; link direto aqui. Obrigada/De nada.
E vocês? Que outros livros incluiriam nessa lista para o ministro Moro? Deixem nos comentários!
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PS: a foto em destaque me apareceu no Facebook, mas não sei quem é o autor(a). Gostaria muito de creditar. Alguém tem uma pista?
Um comentário sobre “8 livros sobre justiça para o ministro Sérgio Moro”