Toy Story está entre as melhores séries de animação já feitas, indiscutivelmente. A sacada de dar vida a brinquedos é genial, pois são esses os primeiros objetos com os quais estabelecemos alguma relação afetiva na vida; são aqueles que nos transportam para mundos paralelos quando ainda não sabemos ler, e nos proporcionam refúgios e pontos de fuga quando precisamos, por qualquer motivo, nos isolar de um mundo que insiste em não se encaixar nos parâmetros do que, em nossa lógica cartesiana de crianças, nos parece injusto. São também os primeiros objetos que nos proporcionam sentimento de perda, quando quebram, quando nós mesmos os abandonamos. Atire o primeira bola de gude quem nunca ficou adiando o momento de jogar velhos brinquedos fora.
Sim, Toy Story é uma obra magistral por trazer tudo isso a tona em um excelente trabalho de roteiro e animação, que perde pouco ao longo dos quatro filmes. Ele só não é original. Publicado pela primeira vez em 1971, Memórias de um cabo de vassoura, do paulista Orígenes Lessa, antecipa boa parte dos argumentos utilizados na série da Pixar – inclusive a ideia central do quarto filme, a de um objeto simples que, por força exclusiva da imaginação infantil, acaba transmutado em brinquedo.
Antes de continuar falando da história, vale contar como esse livro entrou na minha vida: no apartamento onde passei a infância no Recife, os livros ficavam guardados em estantes velhas no famigerado quartinho da empregada. Eram principalmente obras técnicas de engenharia agronômica, mas havia alguns volumes interessantes, como uma enciclopédia infantil, um manual de datilografia dos anos 1950 (com o qual, aliás, eu aprendi a escrever à máquina e depois a digitar), o Guia do Escoteiro Mirim e alguns outros livros avulsos – dentre eles, uma edição de bolso bem surrada de Memórias de um cabo de vassoura.
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Eu devia ter uns oito, nove anos, e esse foi o primeiro livro “de verdade” que tentei ler sozinha. Lembro de que foram várias vezes e não passava de um determinado ponto, em que a história me parecia mais difícil de entender e eu então voltava pro começo. Esse livro que abandonei pela metade nunca me saiu da cabeça – e eis que mais de 30 anos depois, o encontro reeditado no catálogo da Global, parceira do Lombada. Mesmo já sabendo que a editora é conhecida pela publicação de clássicos infantis de autores brasileiros consagrados (para além da hegemonia de Monteiro Lobato), demorei a ligar tico e teco. Esse ano finalmente me toquei – e óbvio, Memória estava lá, numa edição de 2012, gentilmente enviada pela equipe de divulgação.
Nessa nova leitura, já adulta, me surpreendeu o tanto que lembrava do começo do livro: um pedaço de madeira escreve em tom confessional sobre o seu passado e de sua função – da qual se envergonha – como um reles cabo de vassoura. Desde que foi tirada da floresta e separada dos seus pares de madeira, esse pedaço de pinho senciente acumula inúmeras desventuras, desde o medo de virar caixão de defunto aos maus-tratos na serraria, o desespero ao ver irmãs transformadas em descaráveis palitos de dente e a decepção ao se ver atado a uma peça ordinária de piaçava. Lembrava da angústia do cabo de vassoura ao ser comprada no armazém e levada de cabeça pra baixo para sua nova morada, um apartamento de classe média, com mãe, pai, duas crianças, uma babá e uma empregada doméstica, que ele odeia de saída.
Lembrava de como o tom do livro me perturbava, pois era inteiramente diferente dos diálogos quase sempre inócuos dos quadrinhos da Turma da Mônica e da Disney que eu lia na época, e agora adulta finalmente saquei por quê. Orígenes Lessa escreveu um livro infantil repleto de crítica social, especialmente no que diz respeito a relações trabalhistas e entre trabalhadores. Um dos trechos que mais me recordava, logo no começo, é quando o cabo de vassoura narra o medo que as madeiras sentiam ao avistar um simples prego – e da ironia de que o “castigo” seria infringido por um martelo, cujo cabo também é de madeira. Ou quando explica a discriminação sofrida por madeiras comuns – como ele, de pinho – por parte das mais nobres, como o jacarandá. Inserido no cotidiano de uma família, o cabo de vassoura logo passa a observar como se dão essas diferenciações também entre os humanos.
O incrível é que eu jamais cheguei à parte potencialmente mais interessante do livro para uma criança. É quando a piaçava se desgasta e, quase sendo jogado fora, o cabo de vassoura é sequestrado por um dos garotos para servir como um imaginário cavalinho de pau. Ele sai da cozinha e passa a ser guardado no armário dos brinquedos – e é aí que começa o modus Toy Story antecipado por Orígenes Lessa.
Está tudo lá: a competição entre brinquedos clássicos e modernos – com direito a um astronauta japonês que é o próprio Buzz Lightyear – , o medo de ser jogado fora ao quebrar, os consertos improvisados, a aflição de perceber o crescimento das crianças e o inevitável brinquedocídio em massa, e até a redenção vinda com a doação do grupo para uma criança mais jovem (e no caso de Memórias, também mais pobre), exatamente como em Toy Story 3. Mais ainda: o uso do cabo de vassoura como brinquedo antecipa também o enredo principal de Toy Story 4, em que a garotinha Bonnie acaba criando um personagem a partir de um garfo de plástico, com ajuda de Woody.
Não faço ideia se os roteiristas de Toy Story conhecem a obra de Orígenes Lessa, mas as coincidências são absurdamente incríveis. Memórias de um cabo de vassoura vale a leitura para qualquer fã da série curioso por procurar esses easter eggs em retrospectiva – e mais ainda por ser um daqueles livros infantis que desafiam as crianças a pensar a partir de seu próprio universo, sem tratá-las como idiotas. Não é a toa que esse livro ficou quase três décadas na minha cabeça e continua me impressionando por sua força e incrível atualidade.
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