Roma, Londres, Mogadíscio. Três cidades presentes na narrativa de Minha casa é onde estou, romance autobiográfico de Igiaba Scego. Três lugares, nenhum lugar. Italiana, Somali? Quem é essa pessoa nascida no exílio? É atrás de respostas a essa pergunta que se desenrola a escrita da autora, que foi um dos destaques da Flip 2018.
No inverno londrino, em torno de uma mesa carregada de histórias de um passado conturbado, marcado por guerras, perseguições, fugas e exílio, três primos, cada um com uma cidadania diferente, fazem uma tentativa de reconstruir o mapa de uma cidade no qual dois deles nasceram. E outra, Igiaba, passou breves momentos, valendo-se mais dos relatos orais do que do real conhecimento da cidade que nunca foi sua.
Aquele mapa ficará guardado em um fundo de armário, até que resgatado é ponto de partida para um percurso pela história da família. O pai, líder político do período revolucionário e da breve democracia somali, os tios, as teias de relações, a mãe, nascida em uma tribo nômade e presa pelo casamento à grande capital do país, a guerra, o exílio, o desterro em uma Roma muitas vezes hostil, quase sempre racista.
Scego a partir de um outro mapa, pontuando em sua “casa”, a Roma em que nasceu e onde mora, 6 diferentes topônimos, cada um deles ligado a um estágio de sua vida, a lembranças das dificuldades de sobrevivência da família, aos invernos rígidos e aos calores suarentos do verão. E às descobertas que a menina, depois a mulher vai fazendo. Especialmente de que a vida é dura para uma mulher. E será mais dura se ela for mulher, africana e negra. Será pior ainda se não for aceita como italiana, apesar do passaporte. E se as mulheres da família foram maculadas pela extirpação de clitóris, a descoberta é de que nenhum lugar é 100% seguro, nem mesmo a terra dos ancestrais.
Mas também será uma vida de descobertas. O futebol, no encantamento com Rummenigge e a Alemanha campeã de 1990. O cinema de Win Wenders e seu Asas do Desejo. O gosto por música, em especial pela música brasileira e pelas canções de Caetano Veloso, o gosto pelo conhecimento, pelos livros e pela escrita.
Minha casa é onde estou é um livro de reconstrução de memórias que ajudam a autora a criar uma Somália deslocada do tempo e do espaço. Juntando em sua Roma natal os fragmentos do país de seus antepassados. Ligando as histórias de sua família em uma colcha de retalhos que será a cobertura dessa casa chamada lugar nenhum, dessa mansão do desterro.
Essa arte de contar histórias que Scego captou na oralidade da família e nas poucas visitas que fez à África, quando percebeu que
“o fato mais extraordinário era como as pessoas davam importância às histórias. Contar uma história nunca era uma perda de tempo. Aprendia-se, sonhava-se. Tornava-se adulto, tornava-se criança. À noite, na casa da minha tia, contavam-se histórias de hienas selvagens e mulheres furiosas, homens corajosos e astúcias mágicas. Adultos e crianças ficavam juntos para ouvir e contar. A palavra tinha o lugar de honra.”
E ao se dar conta desse lugar dado à narrativa em sua tradição nasceu a escritora, dando continuidade, pela escrita, à transmissão dos conhecimentos e da magia das histórias antes contadas no escuro de uma casa cercada de terror e guerra.
Foi impossível não lembrar de Isabela Figueiredo e os romances que reconstroem o passado colonialista de sua família na Moçambique dominada por portugueses. Cadernos de memórias coloniais e A gorda também são relatos do desterro. De um outro ponto de vista, mas igualmente carregados do lugar ocupado pelas mulheres em mundos machistas, sexistas e racistas.
A bela edição de Minha casa é onde estou é da Nós, com ótima tradução de Francesca Cricelli e foi comprada numa tarde de fúria consumista de livros na Feira da USP. Siga o mapa de Igiaba. Te levará a um bom caminho.
P.S.: a obra que ilustra o post chama-se A grande cidade iluminada, cearense Antônio Bandeira e foi fotografada em exposição no MAR – Museu de Arte do Rio, em setembro de 2017.
Parece bom!
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Recomendo. É muito bom!
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