Loucas somos todas

Loucas, tolas, sim, são as que jamais gritam“.

O que esperar de um romance histórico epistolar sobre uma freira no Brasil colonial, escrito por outra freira, nossa contemporânea, no século 21? Buenas, se a religiosa em questão for Maria Valéria Rezende, só poderia vir coisa boa. Foi com essa certeza que comecei a ler Carta à rainha louca, publicado este ano pela Alfaguara, do Grupo Companhia das Letras. Delícia do começo ao fim, o livro traz todas as marcas de Maria Valéria: escrita fluida e espirituosa, humor fino e crítica social, desta vez acrescida de perspectiva histórica. Quem já leu outros romances da escritora ou a ouviu em festivais literários sabe do que estou falando.

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Em Carta à rainha louca, uma mulher escreve à Rainha Maria I, de Portugal, enquanto aguarda a hora do seu degredo. Ela está presa em uma cela do convento do Recolhimento da Conceição, em Olinda, e usa o tempo que lhe resta para registrar a série de infortúnios que a fizeram chegar até ali. Isabel das Santas Virgens tem a esperança de que apenas outra mulher poderá entendê-la – e mais ainda: outra mulher que, assim como ela, também é considerada louca. Pois grande parte da trajetória desafortunada da personagem é resultado pura e simplesmente de sua condição feminina.

Branca, filha de portugueses, mas pobre, Isabel reúne as condições para sintetizar em si mesma e observar à sua volta todas as violências a que mulheres são submetidas no Brasil colonial. Ela própria fadada à ignorância e ao serviço doméstico, transita quase livremente entre a casa grande e a senzala. Acede à primeira na condição de dama de companhia de uma menina rica, a quem o pai pretende usar como moeda de troca em um casamento de motivação financeira. Na segunda, prisão dos negros, paradoxalmente ela encontra um refúgio onde a cor de sua pele lhe possibilite a sensação de liberdade – lá, ela está livre da vigilância dos outros brancos e é acolhida com solidariedade pelos escravos.

A escrita chega a Isabel de maneira clandestina. Aprende a ler e a escrever observando de longe as lições destinadas à sua ama. Depois, este conhecimento será crucial para conseguir sobreviver, tanto objetivamente quanto subjetivamente. Em vários momentos Isabel ganha dinheiro fazendo cópias de livros e documentos; no fim de sua vida, escreve para tentar manter-se sã na prisão. No meio disso, acaba também acrescentando versos aos poemas que copia – entre eles, alguns de Gregório de Matos – numa pegadinha sagaz da autora. Pra quem não sabe, Gregório nunca registrou pessoalmente os seus poemas e há suspeita de que muito do que chegou até nós tenha sofrido interferências de copistas e editores.

Nesse contexto de invisibilidade e repressão contra as mulheres, a alegação de loucura era uma das práticas correntes para tirar do caminho quem ousasse emitir opiniões ou manter atitudes consideradas inconvenientes para a macharia reinante. É o que acontece a Isabel, é o que acontece à Rainha Maria I. Nessa correspondência entre a colona condenada ao degredo e a monarca da sua época, há a clara indicação de que não importa a condição social: ser mulher é um fator de risco. Era no Brasil colonial, continua sendo hoje – quem aí nunca foi chamada de louca por contradizer um homem?

Do ponto de vista formal, o romance usa um recurso incrível. Isabel escreve à velocidade do pensamento. Aqui e ali se arrepende e risca trechos inteiros (editados dessa forma no livro) que revelam seu pensamento politicamente mais lúcido, mas também mais perigoso. Esse processo de autocensura é fascinante e também diz muito sobre os tempos atuais.

Cartas à rainha louca é sobre o Brasil-Colônia e é sobre o Brasil da era bolsonarista, em que parte considerável da população tem expectativas de submeter as mulheres novamente ao regime de submissão, silenciamento, violências simbólicas e físicas. Isabel usa a sua habilidade com a escrita para se expressar (eis a sobrevivência no campo subjetivo). Embora trancada em um convento, embora condenada a não ter voz, ela sabe: “Loucas, tolas, sim, são as que jamais gritam“.

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PS – A imagem em destaque é um detalhe de obra de 2013 de Vânia Mignone, fotografada no Museu de Arte do Rio (MAR) em julho deste ano.

PPS – Quem já ouviu Maria Valéria Resende falar sabe que ela entende “leitura” e “escrita” de maneira muito mais ampla do que a codificação e decodificação da língua sobre papel. Em pelo menos duas ocasiões a ouvi falar sobre a paixão por literatura dos povos sertanejos do interior do Nordeste, com os quais trabalhou como freira. Isso aparece marginalmente em seu romance por meio do Lunário perpétuo, um livro sobre tudo e que é de grande valia para Isabel – é lá que ela aprende a produzir a tinta que usa para escrever – e que até hoje é uma relíquia dos lares sertanejos, mesmo quando ninguém na família sabe ler.

PPPS – A capa linda foi feita pelo Estúdio Bogotá.

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