Silvina Ocampo (1903-1993) não tem pudor nenhum em fazer com que seus personagens rasguem o ventre e exponham as tripas na mesa – metaforicamente, quero dizer. Os contos reunidos em A Fúria passam bem longe do gore, mas os maus sentimentos são tão deliciosamente exacerbados em seus personagens que a tragédia sanguinolenta parece estar sempre à espreita. Raramente acontece uma, é verdade, mas a maior graça do suspense não é justamente a expectativa?
Rica e casada com o também escritor argentino Adolfo Bioy Casares (1914-1999), Silvina Ocampo nunca tinha sido publicada no Brasil, até o lançamento deste A fúria pela Companhia das Letras. Lançado originalmente em 1959, é a reunião de 34 contos que expõem as contradições da burguesia argentina ao explorar o que existe de pior nos seres humanos – o ódio, o ciúme, a inveja, a perversidade, o individualismo, a indiferença para com o outro.
Muitas vezes, suas histórias trazem cores fantásticas e desfechos bizarros, embora seja difícil classificar o conjunto homogeneamente como uma obra de terror, ou mesmo mais genericamente de ficção especulativa, apesar das inúmeras crianças malignas que aparecem ao longo dos contos, um clássico do gênero. Durante a leitura, lembrei algumas vezes da russa Liudmila Petruchévskaia. Ocampo entrega textos de maior sutileza, e se cai às vezes na fábula, não é sempre, e nem são os melhores momentos do livro – embora um deles seja genial e quase premonitório, ao antecipar a violência das ditaduras que ainda estavam para ocorrer na América Latina.
Neste conto chamado O carrasco, um imperador de um tempo não situado vai à praça pública exibir a seus súditos um cofre onde estavam guardados os gritos de seus opositores, torturados. Enquanto abre a caixa, que tem um dial como se fosse um rádio, o imperador começa a passar mal e acaba morrendo também – de remorso, concluem os técnicos do reino. Não por ter matado seus opositores, mas por não ter ordenado que lhes cortassem as línguas.
Os contos de maior potência são aqueles em que os personagens parecem ter perdido toda a capacidade de se comunicar, deixando que os sentimentos azedos conduzam suas relações quase como se fossem personagens em si. Destaco entre estes o conto O rebento, em que dois irmãos maltratados pelo avô, um bolsominon avant la lettre, estimulam o filho de um deles a brincar com a arma do velho. O avô adora ver o neto reproduzindo a si mesmo numa pantomima de poder e violência; os irmãos deixam que o faça, na esperança não declarada que a criança acabe matando o patriarca por acidente.
Há uma tentativa estranha de ficção científica pastiche em As ondas e uma aproximação ao que se convencionou de chamar de realismo mágico latino-americano em Os sonhos de Leopoldina. No fim das contas, os meus contos preferidos foram os de menor componente fantástico, mas com adensamento de questões sobre as relações humanas. Em um dos primeiros, A continuação, uma escritora borra os limites entre a vida e os contos que está tentando escrever, a ponto de que a relação com seu companheiro é completamente atravessada pela angústia da criação, e nessa obsessão, ele acaba sendo apenas um estorvo:
“Justamente porque era você que me mostrava, eu não olhava para as estrelas que se afundavam na água quando passavam as lanchas, nem a primeira luz da aurora, nem as nuvens que, de acordo com você, formavam o desenho de um morcego gigantesco. Eu procurava a solidão. Não admitia que você dirigisse minha atenção; queria descobrir tudo aquilo por minha conta. […] Eu te abominava porque você me amava normalmente, naturalmente, sem inquietudes, porque dava atenção a outras pessoas.”
Outro dos meus preferidos é O castigo, em que a insistente pergunta “o que você tem?” de um homem para sua companheira desencadeia, nela, a revisão de toda sua história de vida. Mas ela o faz de trás para frente, criando um efeito em seu discurso parecido ao do Benjamim Button de F. Scott Fitzgerald – que inspirou filme com Brad Pitt – no qual uma criança nasce com 80 anos e vai rejuvenescendo à medida em que se torna adulta.
A fúria é um excelente livro de contos atemporais, a despeito de retratar a Argentina da primeira metade do século XX. Afinal, amor e ódio são sentimentos eternos e existirão sempre entre os seres humanos.
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PS: A imagem em destaque é um desenho de Kandinsky, fotografado em exposição no CCBB São Paulo anos atrás.