Histórias de amor & de terror

O título tétrico e o gato preto na capa não deixam dúvidas: Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha, da russa Liudmila Petruschévskaia é literatura fantástica daquelas que exploram fábulas, crendices e o fascínio com a morte. Porém, antes de entrarmos nos contos, um aviso: “Este livro é dedicado ao amor (…), às várias ocorrências do amor”, e suas histórias “parecem velhas baladas nas quais o único que resta de imortal é o amor”.

Contraditório apenas na aparência, esse disclaimer se confirma em quase todos os 21 contos do volume, publicado no Brasil pela Companhia das Letras. O fantástico não é um fim em si, mas um veículo para tratar das relações afetivas, como bem diz o prólogo; relações às vezes reduzidas a sua essência, outras vezes atacadas por metáforas – como no conto “Tem alguém na casa”, em que um apartamento começa a se destruir sem razão aparente, emulando o esgarçamento de uma família.

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É desta história um trecho exemplar do livro, que revela a abordagem de Liudmila com relação ao medo, sentimento basilar no gênero – no fim das contas, o fantástico está na própria vulnerabilidade humana:

“As pessoas sempre têm medo da presença de criaturas desconhecidas, têm medo de insetos, de pequenas formigas no banheiro, têm medo, vamos supor, de uma solitária barata intoxicada, que parece saída de um campo de batalha, que vem correndo da casa dos vizinhos escapando de uma dedetização, ou seja, fica parada num lugar visível. Uma pessoa pode ter medo de tudo quando fica morando sozinha com uma gata, tudo desapareceu, toda a família anterior, ela foi deixada, como uma barata humana, num lugar visível.”

Essa vulnerabilidade é individual e por vezes também social. Em alguns contos, o mote de Liudmila é a tensão do povo russo, seja em função das guerras do início do século XX, seja em razão da rigidez do regime soviético. A escassez de alimentos e o medo de contaminação por doenças move um dos melhores contos do livro, chamado “Higiene”. Um homem sozinho percorre os apartamentos de um condomínio avisando sobre uma doença altamente contagiosa; com medo, a família central se tranca em casa e tenta sobreviver enquanto observa o pânico tomar conta dos vizinhos, até que começam a haver saques em busca de suprimentos. O pânico os faz trancar, sozinha em um quarto, uma criança pequena, porque teve contato com um gata contaminada, até que todos morrem, menos o animal.

Ao final, a escritora nos deixa com a impressão de estamos à frente de um Ovo de Colombo: a doença provocou as mortes e o pânico? Ou foi o pânico, causado possivelmente por um boato, que provocou a doença, as mortes e, por fim, mais pânico? Um texto incrível para se debater comportamento de manada e notícias falsas.

Liudmila localiza seus contos na cidade tanto quanto no meio rural, caso em que as referências à cultura russa aparecem com mais força. “A nova família Robinson”, um casal e seus filhos se estabelece em um vilarejo fugindo de uma ameaça etérea, que paira sobre eles como um fantasma. O seu medo é que “eles virão e vão levar tudo”, embora esse “eles” nunca seja claramente nominado. Enquanto na aldeia, plantam e fazem escambos com três velhas que também moram lá, sempre com a preocupação latente de armazenar comida e bens que possam ser trocados por comida, numa referência direta à história russa recente.

Fabulares, os textos de Liudmila se relacionam bastante aos contos dos irmãos Grimm e aos contos de fada sendo frequente o uso da fórmula “Era uma vez…” (desde o título) para estabelecer esse tempo impreciso, num passado encerrado, onde o absurdo podia acontecer. (Aliás, se você ainda não leu os irmãos Grimm, esqueça os filmes da Disney e vá fundo. Eles estão mais para O massacre da serra elétrica do que para Cinderela).

“Uma vez,  uma menina foi morta, mas depois foi ressuscitada” – é como começa o conto “A casa da fonte”, um dos melhores do livro. Em uma frase, a escritora estabelece o tom de fábula e entrega o final da história – resta preenchê-la com uma narrativa objetiva e ao mesmo tempo onírica, em um texto em que o amor é tema central: inconformado com a morte da filha adolescente em uma explosão, o pai tira o corpo dela do necrotério e o instala em um leito de hospital, convencendo os médicos a tratá-la. Ao mesmo tempo, cai doente no leito ao lado, e em seus delírios de moribundo, encontra com a filha em sonhos, até que ela volta à vida.

Outro ponto notável é como a autora aproveita o fantástico para jogar com a ambiguidade, soltando frases que fazem sentido tanto dentro dessa lógica extraordinária como no mundo objetivo: “Não é segredo que, sobretudo com a idade, às vezes a alma anterior de uma pessoa desaparece, e cria-se uma nova”. De fato, não?

Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha demora um pouco a engrenar: os três primeiros contos do livro são justamente os menos notáveis, mas a partir daí fica uma delícia. Persona excêntrica, Liudmila Preuchévskaia foi uma das estrelas da Flip este ano – uma pena não ter podido ir a Paraty.

PS: A imagem que ilustra este post é um detalhe da tela As tentações de Santo Antão, de Hieronymus Bosch, da coleção do MASP. Pintada por volta do ano 1500.

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