Quem acompanha o blog sabe que já escrevemos algumas vezes sobre livros construídos a partir de regras formais aleatórias criadas pelo autor, seja como desafio, exercício de concisão ou mote para a história. Xadrez, de Luiz Eduardo de Carvalho, vai pelo terceiro caminho: seu romance publicado em 2019 pela editora Patuá usa uma partida do nobre jogo de estratégia para colocar dois personagens em confronto: Emanuel, um senhor português residindo no Rio de Janeiro, e Joel, empresário preso em Fortaleza pelo assassinato da esposa e do amante dela. O que une os dois é o apreço pelo jogo e a disposição para jogar à distância – no caso deles, por troca de cartas.
Parece esquisito nesses tempos em que é só baixar um aplicativo e jogar contra outro adversário online – ou contra a máquina -, mas o xadrez epistolar é uma modalidade antiga e ainda em vigor, havendo entidades nacionais e internacionais que organizam torneios oficiais. Os lances são dados por coordenadas que localizam as peças e seu destino no tabuleiro, como na batalha naval. Originalmente jogado apenas por cartas ou cartões postais, hoje as partidas são travadas também por email ou com o registro das jogadas em um servidor da internet.
Mas o livro é ambientado em 1977 e um dos personagens está encarcerado; resta aos personagens então se valer dos Correios. Emanuel é novato no esquema e encontra Joel por meio da indicação de um amigo; Joel já é escolado na prática e mantinha dois jogos paralelos quando aceita o desafio do português para iniciar mais uma partida. As cartas levam cerca de 15 dias entre um destino e outro; são duas jogadas por mês, uma de cada jogador. Espera-se, portanto, que a partida dure vários anos, uma temporalidade importante para a história construída por Carvalho.Emanuel e Joel começam com uma troca de cordialidades obrigatórias que aos poucos evolui para uma amizade improvável, já que eles têm opiniões contrárias sobre praticamente tudo.
A movimentação das peças no tabuleiro dita o ritmo dessa relação, com jogadas arriscadas e captura de peças logo no início do jogo, quando os adversários parecem estar se testando. Mas a imposição da solitude para ambos – além de Joel estar preso, Emanuel tem uma doença que o deixa praticamente imóvel em casa – acaba por fazer com que encontrem brechas para a construção de um relacionamento epistolar que vai além do jogo. Nesse ponto, as jogadas parecem ficar mais prudentes.A amizade se aprofunda quando Emanuel começa e enviar livros para o amigo, e os dois começam a falar sobre as obras. Embora ainda discordando em questões fundamentais em suas percepções literárias, os livros os aproximam. Há mesmo um momento em que os adversários parecem querer prolongar o jogo propositalmente. O ponto de inflexão começa quando Emanuel contrata uma nova enfermeira, que logo vira muito mais do que uma cuidadora. Todos os detalhes dessa aventura amorosa são contados a Joel nas cartas, e a correspondência fica quase erótica, encaminhando o livro até o desfecho inesperado.
Tentei ler Xadrez repetindo o jogo epistolar num aplicativo de celular, jogada a jogada – não deu muito certo. Primeiro porque meus conhecimentos do jogo se limitam a saber como as peças se movem, e nada mais; segundo, porque eu estava na praia (¯\_(ツ)_/¯); terceiro, porque a notação das jogadas não é tão fácil assim de acompanhar para que nunca tinha trabalhado com o tabuleiro em coordenadas. De toda forma, finda a leitura, Carvalho revela que o jogo utilizado no livro é uma partida que realmente existiu, entre os enxadristas Anand e Topalov – e sem surpresa alguma, a encontrei em segundos numa busca no Google.Além de tudo, a adesão à forma se mostra também na edição de Xadrez, feita num corte quadrado, quase no tamanho de um tabuleiro. Capa e ilustrações internas são de Leonardo Mathias, designer que faz, com muita competência, boa parte dos livros da Patuá.
O romance é um bom exercício de escrita e segue na esteira de outros autores que também adotam pré-definições formais de inspiração matemática, como Ana Miranda, José Castello, Georges Perec e os integrantes do Oulipo, embora o autor tenha deixado passar algumas incoerências internas difíceis de engolir – como Joel falar abertamente em fuga em cartas escritas de dentro da prisão, em plena ditadura militar.Contudo, isso não diminuí a experiência divertida que é acompanhar a correspondência dos amigos improváveis, do primeiro peão ao xeque-mate.
PS: Para saber mais sobre a relação entre Literatura e Matemática, leia a resenha da pesquisa feita por Jacques Fux.