A badporntrip de Zeca

Estamos em um fim de semana no final do ano de 2006. Depois do cenário de terra arrasada do cinema nacional nos anos 1980 e 1990, José Carlos Ribeiro, o Zeca, é um sobrevivente dos tempos em que praticamente só os Barreto conseguiam fazer filmes no Brasil. Foi na década de 1990, período que a pesquisadora Lucia Nagib classificou como do “cinema da retomada”, que o anti-herói de Pornopopeia, romance de Reinaldo Moraes, conseguiu filmar seu único longa-metragem, um papo cabeça, um tanto pornô, um tanto pretensioso, chamado Holisticofrenia. A partir daí, com um prêmio em Cartagena e alguma notoriedade conquistada, a vida de Zeca foi descendo a ladeira. Depois de realizar produções pornôs baratas e pouco vistas e um bocado de vídeos institucionais mal ajambrados que lhe rendiam alguns trocados para comprar drogas, tomar cervejas vagabundas e pegar umas putas no baixo Augusta, no centro de São Paulo. Tudo isso enquanto tentava manter um casamento, com um filho pequeno, e a sociedade com um cunhado rico, que lhe garantia uma mesada e um escritório charmoso em um prédio dos antigos e bonitões no bairro aristocrático de Higienópolis.

É quando nós, leitores, entramos na história de Zé Carlos. Nesse ponto ele ainda estava no alto da ladeira, em um “Corsa preto” desgovernado (carro com aparições marcantes nas mais de 500 páginas do livro).

Pornopopeia CapaTudo começa quando Zeca acaba de receber encomenda para roteirizar um vibrante institucional sobre embutidos de frango. O produtor da agência avisa que é a última chance de ele entregar um trabalho decente, que não tenha ideias delirantes e se ajuste ao orçamento. E, principalmente, que ele cumpra o prazo, já atrasado nesse começo de narrativa. O problema maior é que há um fim de semana pela frente. E a ladeira está ali, quase um precipício, convidando José Carlos para uma jornada de autossabotagem alucinante que vai fazer a gente grudar na trama até o fim.

As desventuras desse final de semana de Zeca são narradas por ele mesmo, no calor dos acontecimentos, na forma de uma carta ao leitor, supostamente um amigo seu a quem o maluco deseja confiar as loucuras que vive nesses dias, apostando que elas vão compor o roteiro de um novo filme, aquele que finalmente o colocará no patamar dos grandes realizadores. O cineasta já se vê em Cannes, comparado a Godard, Glauber e outros gênios do cinema. É o complexo de “me beija que eu sou cineasta” agindo fortemente no cérebro entupido de alcaloides do anti-herói.

No lugar de um roteiro genial, o que vamos ler é o relato cru, em primeira pessoa, de uma sucessão de trapalhadas, aventuras sexuais, incursões em puteiros famosos do baixo Augusta e casas discretas das ruas de Pinheiros. Com muito pó, maconha, bebida de má qualidade e delírios sem fim.

Zeca é a personificação de um cara que se acha boa praça. Mas que transparece escrotidão. Machista, misógino, homofóbico, racista. Todos esses rótulos se aplicam ao narrador dos desvarios de Pornopopeia. Tal como no Brasil de hoje, o roteiro da vida de José Carlos Ribeiro parece tão improvável que a gente atribui as reviravoltas e as situações delirantes a uma mente incapaz de dar verossimilhança a uma boa história.

Entre pirações “surubramânicas” em um casarão de Perdizes, onde a líder de uma seita inspirada em rituais hindus promove altas orgias, até os inferninhos do “sertão” de Paraty, na reta final da história, a jornada de Zeca é uma sucessão infindável e enjoativa de sexo e drogas, sem nenhum rock and roll. Moraes faz uma narrativa continuamente pesada, que em nenhum momento dá folga ao leitor. O sexo vai se banalizando. E a sensação, ao final da leitura, é de que entre todos os livros que já li, este é o que mais fala de trepadas, com pormenores dignos de um filme pornô. E o que menos erotiza a experiência sexual. Tradução exata de um priapismo que torna a vida de Zeca uma eterna busca insatisfeita e inconclusa de situações que no fundo são apenas desculpas para fugir das contas a pagar e das encrencas que vai deixando pelo caminho.

E quanta encrenca. Estamos no final do ano que ficou marcado pelos dias em que o PCC deu salve geral e botou terror em toda a sociedade paulista. Na Pornopopeia de Zeca, tem assassinato de traficante, roubo de drogas, fuga para um paraíso no litoral Norte, transas com menor de idade ou com uma matrona dona de pousada, prostitutas aos montes, acusação de violência sexual. Tudo narrado com um humor que não faz rir.

Zeca é, finalmente, a síntese do fracasso e da frustração. E vale ser lido pela linguagem que Reinaldo Moraes adota, trazendo para as páginas do romance uma prosa coloquial, carregada de onomatopeias, gírias, haicais infames compostos pelo narrador, sem medo de usar palavrões aos montes e de narrar detalhes das transas e do uso desenfreado de cocaína. Lançado em 2008, o romance ganhou notoriedade. E volta, agora, em nova edição pela Alfaguara, do grupo Companhia das Letras.

 

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