Ao final da leitura de O homem sem malícia, romance de Zé Irineu Filho, tive a certeza de ter lido uma espécie de Pornopopeia às avessas. O romance de Reinaldo Moraes está resenhado aqui, que tem muito a ver e nada a ver com a obra lançada pela editora Córrego em 2020, 11 anos depois. Um livro que me fez fazer ligações entre dois textos essencialmente diferentes, mas com muitos pontos de contato.
Zeca, o anti-herói de Moraes, é um paulistano branco, burguês e inconsequente. Gabriel, o protagonista de O homem sem sentido é um paulistano negro, filho de sambista famosos, com uma situação financeira familiar confortável, mas de raízes periféricas. Em comum com o Zeca, circula em boa parte dos ambientes em que o pornopopeico de Moraes faz sua bad trip. Vila Madalena, centrão da cidade, especialmente o baixo Augusta e a praça Roosevelt, além de incursões em praias distantes, em busca de aventuras sexuais e viagens baseadas em muito sexo, drogas e doses cavalares de bebidas alcoólicas.

Mas as semelhanças terminam aqui. Zeca é uma pessoa vazia de qualquer ligação afetiva, não pensa politicamente, mal considera o filho e seus laços familiares e profissionais. É um franco-atirador em busca de sensações cada vez mais radicais e desprovidas de sentido e sem qualquer ligação orgânica com a cidade que lhe serve de cenário para loucuras progressivas e aflitivas.
Gabriel tem suas paixões, uma história familiar complexa, vida profissional errática, depois de uma (quase) promissora carreira como jogador profissional de basquete, flertes constantes com a ilegalidade, expressa em uma capacidade absurda de ganhar dinheiro com jogatinas clandestinas de pôquer, que lhe servem como uma espécie de negação do fracasso junto a amigos e parentes, afinal ele é um jogador célebre, e dão estofo financeiro para que possa se meter nas mais variadas aventuras etílicas e sexuais. E, quanto ao sexo, o narrador, em primeira pessoa, deixa qualquer leitor ou leitora instigado com sua infinita capacidade de manter ereções e longas jornadas carregadas de detalhes um tanto explícitos e, por vezes, inspiradores.
Em paralelo, o durão Gabriel tem uma relação especial com a avó, ponto de ligação com a ancestralidade, as origens religiosas de uma família de descendentes de escravos, sincretizada, mas ainda conectada aos orixás de seus antepassados.
O romance se alterna entre os lugares da boemia paulistana, a periferia e uma longa estada em Salvador, plena de descobertas para um Gabriel que viaja sem perspectivas e volta ainda mais conectado às figuras femininas de sua família.
Zé Irineu Filho construiu um romance de linguagem direta, dura, sem lirismos, mas com muitas doses de um erotismo que se aproxima da pornopoeia de Reinaldo Moraes. Sexo, bebidas e drogas sem rodeios. Uma prosa urbana, de uma cidade polifônica, a linguagem das ruas transportada para um romance que você quer ler de uma sentada, para entender os caminhos do anti-herói.
Leitura que levou este paulistano a lugares afetivos, como os botecos da Augusta e da Vila Madalena, o Papo, Pinga e Petisco, point obrigatório da praça Roosevelt, os rolês pela vida cultural da cidade e seus tipos, personagens onipresentes da prosa de Zé Irineu Filho.
P.S. Na foto, a mesa da Mercearia São Pedro, a Merça, um dos muitos possíveis points de Gabriel, que agora está sob ameaça de fechar as portas, pressionada pela especulação imobiliária.