Eu não vou resenhar O som do rugido da onça, o novo romance da escritora pernambucana Micheliny Verunschk,  dizendo que ele parte de uma história real de 1817, em que duas crianças indígenas, e muitas outros “espécimes nativos”, foram raptados pelos “naturalistas” alemães Spix e Martius. Não vou lembrar da violência que incluiu a entrega da menina da nação Miranha, no romance chamada de Iñe-E, pelo próprio pai, além de Juri, seu companheiro de infortúnio, capturado na guerra entre tribos e também entregue como presente aos exploradores. Nem lembrar que na travessia do Atlântico parte das “presas” morreu de fome e de doenças que os europeus traziam aos corpos indefesos. Nem tampouco dizer que as duas crianças enfrentaram em Munique, na Baviera, o frio europeu, associado à humilhação de terem se tornado em seus poucos momentos de vida no solo alemão objeto de curiosidade, tal qual animais expostos em um zoológico. As crianças morreram, deixando pequenos vestígios de sua breve existência, tanto em solo alemão, com referências em livros de história e nos relatos dos próprios Spix e Martius, além de um tímido monumento em Munique, como em duas gravuras, encontradas por Micheliny em meio à coleção Brasilianas, do Instituto Itaú Cultural, em São Paulo, em que as crianças foram eternizadas.

O que quero contar nessa resenha é como Verunschk partiu de mínimas referências a essa história, mais uma de tantas crueldades promovidas pelo colonialismo e pelo eurocentrismo, para nos mostrar como se constrói um romance. Uma casa, ou, nas palavras dela, a “maloca” indígena que, do piso ao telhado revela os passos que a escritora deu para nos entregar uma obra baseada em inspiração, pesquisa, e, especialmente, horas a fio de suor e trabalho duro. Deixando claro que a produção literária – e como um todo, toda a produção cultural – não é mera diversão de quem nada tem a fazer, ao contrário do que pensam os detratores da cultura em nossos tempos sombrios.

Para mim, entre as muitas qualidades do romance, esse foi o aspecto político fundamental de um relato que faz ponte entre as histórias absurdas do passado colonialista e escravocrata com um presente igualmente assustador, embora hoje sejamos muitos a resistir. E é nessa ponte que Micheliny investe, ao introduzir na narrativa Josefa, a pesquisadora de origem paraense, nossa contemporânea, que vai em busca de suas origens indígenas renegadas pelo lado “branco” da família, mergulhando em uma viagem de pesquisa acadêmica, incerta, a Munique, no rastro da trajetória das duas crianças indígenas em solo alemão. Um percurso que liga as duas histórias ao abandono paterno e ao apagamento de vestígios ancestrais.

No piso dessa casa da palavra, a base do romance, está essa ponte. O madeirame e as paredes que vão sustentar o telhado é constituído pela pesquisa histórica, que resgata o trajeto das crianças, desde seu rapto no interior da Amazônia, a chegada ao porto, o embarque para a Europa e a curta duração de suas frágeis vidas na Baviera. É nesse ponto da trama que transparece parte considerável do suor advindo de leituras sem fim, conversas com pesquisadores, estudo de mapas do passado, dos costumes de brasileiros e europeus dessa época e o entendimento sobre o zeitgeist daquele princípio de século XIX para poder dar verossimilhança às ações de Spix e Martius, das próprias crianças, das nações indígenas de onde foram roubadas e da corte bávara e suas idiossincrasias. E ainda tem muita gente por aí achando que a criação artística é uma moleza.

O “trançado de cipó das paredes” e as palhas que dão ao teto o abrigo que a maloca vai proporcionar a seus moradores podem ser definidos como o momento em que a escritora vai partir dos fatos históricos narrados e comprovados para preencher lacunas com a imaginação. Nesse momento, entra na narrativa a maravilhosa relação de Iñe-E, a menina Miranha, com a natureza que lhe é negada, mas, jamais, subtraída pela ação violenta de seus captores. Arrancada à força de sua terra de matas, rios e bichos, ela vai fazer seu trajeto rumo à morte sempre em sintonia com as forças naturais que a cercam. Não consegue entender o mar, um “rio” que não lhe dá acolhida. Mas, em Munique, entra imediatamente em comunicação com Isar, o rio que corta a cidade. Mais do que todos os moradores daquela cidade fria e inóspita, ela é quem consegue entender a história ancestral daquelas águas que carregam peixes, árvores e pessoas em uma comunicação silenciosa e carregada de poesia.

Também é no campo fértil da imaginação que Micheliny Verunschk dá ao romance outra pitada de lirismo na relação de Iñe-E com as onças. E quem acompanha a escritora, vai entender a força dessa presença. Mas aí o leitor pode pensar que esse toque de imaginação que dá liga à construção e bota de pé a casa da palavra é fruto de pura inspiração. Nada disso, minha gente. As histórias da menina, assim como o percurso de Josefa no tempo presente para resgatar suas origens, também são resultado de leituras, pesquisas e conversas sobre mitos indígenas que atravessam os tempos.

Em suma O som do rugido da onça é um romance que desnuda esse processo de elaboração da escrita, que se mostra explícito no posfácio da autora. Lançamento da Companhia das Letras que merece uma leitura atenta aos sinais que se mostram a cada página.

P.S.: a foto que ilustra o post é da rua dos Miranhas, em plena Vila Madalena/Jardim das Bandeiras, que me remete à canção Ruas da cidade, de Marcio e Lô Borges, gravada no sensacional álbum Clube da esquina, de Milton Nascimento. Fala das ruas do centro de Belo Horizonte, que “homenageiam” populações indígenas de uma cidade que “plantou no coração tantos nomes de quem morreu, horizonte perdido no meio da selva, cresceu o arraial”, que você pode ouvir aqui.

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