Morar no Recife é ter o sol como uma presença marcante o ano interno, quase como o primo inconveniente de que você até gosta, mas que se torna irritante porque nunca vai embora. Tudo no Recife é atravessado por este fato – a temperatura, é claro, mas também a luz, a forma como percebemos as cores, como nos vestimos, as piadas que fazemos, como moramos, como geramos nossas memórias. Morar no Recife é ter o sol na cabeça, em vários sentidos.
Não por acaso, saiu de dois recifenses o livro infantil Relógio de Sol, que tem como princípio o sumiço repentino do astro-rei. Diogo Monteiro (texto) e Yellow (ilustrações) gestaram a obra ao longo de vários anos, e ela acabou lançada recentemente pela editora Vacatussa. O mote não é de todo original: o último curta-metragem de Kleber Medonça Filho antes de estourar com O Som ao Redor parte de uma ideia semelhante – em Recife frio, um inverno repentino e inesperado se abate sobre a capital pernambucana.
Se no curta-metragem Kleber trata o sumiço do sol como farsa – o filme é um falso documentário que trata com sarcasmo as idiossincrasias dos hábitos burgueses dos recifenses – em Relógio de Sol o tom é fabular e soturno. O sol some por tempo o suficiente para que uma geração inteira de pessoas não conheça mais o mundo sem ele. Nesse cenário distópico, o personagem principal é um antigo relógio de sol, construído em um parque, que acaba abandonado e coberto pelo mato.
O relógio sofre de solidão e de dúvidas sobre sua própria razão de ser. “Algo que não funciona tem valor?”; “quem não tem função serve de quê para a sociedade?”. Mas um dia, o relógio é encontrado por um menino curioso, que chama outras pessoas para vê-lo. A velha estrutura abandonada vira, então, o centro da vida comunitária; o testemunho material do tempo em que o sol existia e uma conexão com uma forma de temporalidade que a indistinção entre dia e noite implantara.

O mundo continua no escuro, ao fim de Relógio de Sol, que não deixa de ter um final feliz: transformado num símbolo de esperança, o relógio se alegra, pois agora mede o futuro – e é interessante como nas duas últimas páginas do livro o escritor adota um tom mais aberto, poético, interpretado mais literalmente pelo ilustrador, que nos oferece praticamente um carnaval pernambucano, e um relógio de sol feliz da vida com uma traquitana mecânica que lhe oferece luz artificial para que possa voltar a marcar a passagem do tempo.
Há muitas coisas pra se tirar do livro. Como sempre escrevo aqui, os bons livros infantis têm o poder concentrado da síntese e da poesia, catalisando em poucas palavras grandes questões.
A depressão que o relógio sente quando deixa de ter uma função parte de questionamentos muito comuns numa sociedade altamente meritocrática, funcionalista e capacitista, também conhecida como o mundo de hoje. Viver é ter de trabalhar em algo que seja considerado útil; servir à sociedade é fazer a economia girar; se dá bem quem tem mérito próprio.
Em sua jornada de redescoberta, o relógio recupera relevância não por sua utilidade prática, mas por ter assumido a função de símbolo. Redivivo dessa maneira, passa a ser até mais importante para sua comunidade, que o transforma no centro de sua vivência cultural. Assim, se torna um semióforo, um signo que ganha valor pelo que representa para além de sua materialidade.
[Escrevo esse post levemente influenciada pelas leituras do mestrado em Museologia no que vem sendo uma corrida maluca para sanar o gap teórico que tenho com relação ao restante da turma (o que, aliás, é um dos motivos para o sumiço aqui do blog). Fato é, a história do relógio de sol caiu como uma luva em conceitos que venho estudando agora, como o da musealização (grosso modo, o processo de transformação de uma coisa em um objeto de museu) e dos ecomuseus, ou museus comunitários].
Ademais, a metáfora mais evidente de Relógio de Sol é a do próprio momento da pandemia de Covid-19 num Brasil sob o governo Bolsonaro . Embora os autores expliquem em entrevistas e lives que a história tem quase 10 anos de gestação – quando nem a pandemia, nem Bolsonaro, estavam no horizonte – ela expressa muito bem o momento de desesperança que estamos vivendo. Com a cultura sendo criminalizada desde o começo do Governo, a violência como método e as mais de 470 mil mortes por coronavírus até agora, parece mesmo que estamos numa noite sem fim.
Seremos capazes de encontrar o nosso relógio de sol?
Curtiu? O livro está à venda no site da Vacatussa.
Como conterrâneo que mora em Salvador há algumas décadas, ainda guardo num canto do coração aquele sol e aquela sensação de estar dentro de uma panela de pressão.
Maravilha de achado. Vida longa à Lombada Quadrada. Perfeita tradução daquilo que gostaria de ver multiplicado nos meios digitais.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Que legal, Carlos, muito obrigada pelo comentário e pela leitura do blog. Seguimos!
CurtirCurtido por 1 pessoa