A misteriosa escritora Elena Ferrante conseguiu descobrir na literatura o mesmo efeito “é impossível comer um só” dos salgadinhos e bolachas cujos pacotes a gente abre e devora até ficar só a embalagem. Aromatizantes artificiais que encantam e nos deixam com a sensação de insaciedade até que, ao fim da comilança, percebemos que fomos além do razoável. É mais ou menos o que sinto quando leio qualquer coisa escrita por Ferrante, que parece ter uma espécie de fórmula encantatória, como já descrevi neste post sobre Dias de abandono. A diferença é que as técnicas da italiana, a meu ver, não apelam para artificialismos. São boa literatura, com um domínio magistral da arte de contar histórias.

E foi a mesma sensação que tive na leitura de seu mais recente romance, A vida mentirosa dos adultos, lançado na Itália em 2019 e que chegou às livrarias brasileiras em plena pandemia, cercado de expectativas. Assim como em Dias de abandono e, principalmente, na Série Napolitana – que foi um dos maiores frissons literários da década que se encerrou – A vida mentirosa dos adultos traz pelo menos 7 elementos marcantes na obra de Elena Ferrante. São elementos que vão além da mera repetição temática. Eles são verdadeiras obsessões da autora.
- Nápoles
A cidade é a principal personagem dos romances de Ferrante. Na tetraologia vamos da periferia ao centro, percorremos ruas, passeios, praças, conhecemos a paisagem, o mar, as ilhas do golfo. Em Dias de abandono, embora a trama se passe em Turim, a personagem principal é napolitana e se refere com frequência à infância e adolescência passadas na cidade. Já em A vida mentirosa dos adultos, a trama parte do Vomero, um dos bairros nobres da cidade, para a baixada onde a máfia e a pobreza se misturam e entrelaçam a vida da menina Giovanna, filha de professores secundaristas, moradores dos “altos”, com a de sua tia paterna Vittoria, que vive no temido bairro do Pascone.
“Em uma cidade como Nápoles, habitada por famílias com numerosas ramificações que, mesmo entre as brigas mais sanguinolentas, nunca cortavam de fato os laços, meu pai vivia, ao contrário, como se não tivesse parentes consanguíneos, como se tivesse autogerado.”
- Estratos sociais, violência, contrastes
Tanto na tetralogia quanto em A vida mentirosa as divisões da sociedade napolitana aparecem junto com a geografia dos bairros. Pobreza versus riqueza, elegância em oposição à feiura dos bairros populares, a onipresença da máfia e das gangues de bairro, a permanente sombra do norte desenvolvido em contraste com o sul da Itália, alvo de preconceito. Entre as personagens, estão aquelas pessoas conformadas com seu lugar na sociedade. E há as poucas que têm ambições para mudar de vida, de cidade, enriquecer ou, pelo menos, contrariar aquilo que muitos chamam de “a ordem natural das coisas”.
- Adolescência
Ferrante tem uma habilidade especial para lidar com a adolescência. O novo romance é todo narrado por uma mulher adulta, que lembra os anos duros e conflituosos de sua adolescência, os conflitos com os pais, a dificuldade com o corpo e a sexualidade, os desafios da vida escolar. Também é assim na tetraologia, especialmente nos dois primeiros livros, que tratam da infância e adolescência de Lenu e sua amiga genial. A escritora consegue modular a linguagem e, para os leitores adultos, as lembranças do que vivemos em nossa própria adolescência brotam a cada novo dilema da personagem.
- Relações conjugais
Casamentos “perfeitos” que se dissolvem em um piscar de olhos. Visões de mundo que se distanciam, relações extraconjugais que entram em cena ou são descobertas de modo traumático. A vida em família é sempre cercada de conflitos nas histórias de Elena Ferrante. E não é diferente em A vida mentirosa dos adultos. É recorrente a visão que as adolescentes de Ferrante têm das famílias perfeitas, como é o caso de Giovanna, que acha a grama das amigas da família mais verde, até que desaba sobre ela uma terrível realidade conjugal dos pais.
- Livros
Lenu e Giovanna, em dado momento de suas vidas, descobrem os livros. Eles são um portal para que possam pensar em outros mundos e circular em outros ambientes sociais. Tanto na tetralogia, quanto no novo romance, as meninas fazem um roteiro que vão dos romances açucarados a uma literatura mais refinada e aos ensaios de sociologia e antropologia.
- O conhecimento como chave para a independência
Romper laços com a pobreza ou ganhar independência em relação aos pais professores. Na tetralogia, Lenu descobre que só vai ganhar espaço em círculos que a levem para longe do bairro periférico se ampliar sua gama de conhecimentos. Para isso, precisa ir além dos livros e passa a buscar uma trajetória escolar de excelência. Tudo para ser aceita nos ambientes onde deseja circular e, quem sabe, escapar de Nápoles. Já para Giovanna, filha de professores do ensino médio, a escola é por muito tempo um fardo. Só com o passar do tempo ela percebe que precisa encontrar sua independência e ganhar a atenção para ser vista enfim como uma adulta. Para isso, aposta em mais essa obsessão da escritora: a busca do conhecimento.
- A adoração por rapazes inteligentes e a ameaça à independência
Giovanna, assim como Lenu, passa a venerar um rapaz mais velho, que começa brilhante carreira universitária em Milão. Este enxerga qualidades intelectuais nela, mas já está comprometido com outra garota, que é protegida da tia Vitória, em uma história muito louca, para a qual não vou dar spoiler. O problema é que Giannina passa a anular sua sexualidade e se conformar em ser mera adoradora do rapaz, quase anulando o tópico anterior, que é essencial na obra de Ferrante: o uso do conhecimento para construir independência e se manter longe de relações tóxicas.
- Ensino
São muitos os professores e pesquisadores nos livros de Elena Ferrante. A vida mentirosa dos adultos tem os pais de Giovanna, que lecionam no ensino médio e têm relação muito próxima de outro casal, cujo marido, Mariano, circula nos meios universitários. Roberto, o objeto de adoração da garota, é um prodígio na universidade. E há uma cena em que Giovanna vai a Milão acompanhar a amiga que é namorada de Roberto e rola um jantar com professores universitários. Debates acalorados sobre política italiana deixam a menina de 15 anos impressionada e nos fazem lembrar das visitas que Lenu fazia ao apartamento de um namoradinho, filho de importantes intelectuais. Ensino e debates são a sétima obessão de Ferrante.
E você, leitora e leitor da obra de Elena Ferrante, enxerga mais temas que se repetem nos livros da tetralogia e os outros romances?
A vida mentirosa dos adultos foi publicado pela editora Intrínseca. A tetralogia era da Biblioteca Azul, da Globo. Apesar do projeto gráfico do miolo ser interessante, não gostei da capa. A tradução de Marcelino Lino é muito boa. Mas o romance não fica entre meus preferidos. A tetralogia, especialmente nos dois últimos volumes, continua imbatível. Agora, que Elena Ferrante tem o dom de fazer a gente devorar cada capítulo até terminar o livro, isso ela tem e, por isso, vale muito a leitura.
Carlos, adorei o livro também, e concordo que a capa deixou bastante a desejar. Se não fosse da Elena Ferrante, não teria me chamado a atenção. Das obsessões, uma particularmente que acho que você não mencionou é a relação com as amigas. Por mais que a tetralogia tenha o relacionamento da Lila e Lenu como central, acho que A vida mentirosa tem na amizade (e seus altos e baixos) um componente também bem destacado.
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Cintia, obrigado pela visita e comentário. Gostei do ponto que você trouxe. De fato, a amizade, com suas contradições, é um dos temas presentes na tetralogia e também em “A vida mentirosa…”. Em “Dias de abandono” esse elemento não está presente, até porque a protagonista vive solitária, com o filho, em uma cidade na qual não gostaria de estar. Mas, realmente, amizade é um dos fios condutores nesse romance. Fico aliviado com sua percepção a respeito da capa. É muito ruim. Mas, no miolo, a foto de Napoli que vai se revelando a cada abertura de capítulo foi uma boa sacada.
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