Os três roteiros de Kleber Mendonça Filho

Ao contrário das peças de teatro, que encontram no formato livro um desdobramento quase natural das montagens que vão aos palcos, há poucos roteiros de cinema publicados no Brasil, mesmo estrangeiros. Talvez reflexo de uma indústria ainda amadurecendo, num país em que o número finito de leitores não dá conta nem de consumir o que se produz em literatura stricto sensu? Só uma hipótese que me vem à cabeça agora, enquanto inicio este post para falar de Três roteiros, de Kleber Mendonça Filho, que acaba de sair pela Companhia das Letras, compilando os textos que deram origem a O som ao redor (2012), Aquarius (2016) e Bacurau (2019).

O livro apresenta a oportunidade de conhecer um pouco mais do processo de criação dos três filmes, obrigatórios em qualquer lista dos melhores produzidos no Brasil na última década – Bacurau, pra quem não lembra, foi a primeira obra brasileira a levar o prêmio do júri de Festival de Cannes depois de O pagador de promessas, de 1962. Antes dele, O som ao redor e Aquarius já nos tinham deixado sonhando com a conquista de alguma relevância internacional para o cinema nacional.

Obviamente, o interesse será maior para quem viu os filmes. Na introdução, Kleber esclarece que escolheu publicar os roteiros originais do jeito como eram antes de iniciadas as filmagens. Há diferenças importantes entre os textos e o que foi pras telas.

Em O som ao redor, um spoiler logo no início foi cortado, com o resultado de manter o mistério com relação ao personagem Clodoaldo, o segurança interpretado por Irandhir Santos. No final, o assassinato de Francisco (W. J. Solha) muda bastante de formato para se encaixar no timing de mais um capítulo da briga da dona de casa Bia (Maeve Jenkings) com o seu vizinho por causa de um cachorro barulhento – o resultado na tela é tão redondo que é difícil até imaginar que não tenha sido pensado originalmente daquela forma.

Muda também o final de Aquarius, em que todo um epílogo sobre a vida de Clara depois do embate com a construtora foi cortado.

Nos melhores dias, acredito que o roteiro é uma peça de literatura, certamente peculiar. Roteiros talvez tenham uma textura telegráfica, mas ainda assim podem ser capazes de apresentar um fluxo claro de ideias e sugestões maliciosas como qualquer bom texto.

É bem isso: na leitura de um roteiro, aquilo que não vemos pode ser descrito pelo criador com maior ou menor nível de detalhes, ou simplesmente não descrito. Em várias ocasiões, temos apenas o diálogo para nos sugerir a ação ou a intenção simbólica, e é interessante perceber os espaços a serem preenchidos no set de filmagem, talvez em função das condições reais daquele dia, da interação com os atores ou de uma mudança repentina de ideia. No roteiro de Bacurau não existe a cena em que os habitantes do povoado engolem uma sementinha antes da guerra com os forasteiros, embora já estivesse lá, em uma fala do professor Plínio (Wilson Rabelo), a revelação posterior de que estavam todos drogados.

O livro traz ainda fotos dos sets e stills dos filmes, desenhos de Bacurau e prefácio assinado por Ismail Xavier – que achei excessivamente descritivo.

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Mendonça Filho é jornalista de origem, tendo trabalhado vários anos como crítico de cinema para o Jornal do Commercio, no Recife, no que já era o início de um trabalho de formação de público para o cinema na minha cidade natal. Depois, foi programador do Cinema da Fundação e criador do festival Janela de Cinema do Recife, em que esse papel se aprofundou, com um componente indissociável de valorização de salas de exibição fora do circuito dos shoppings centers. Digo tudo isso para anotar que o cineasta não surgiu de repente e do nada, e que o Museu de Bacurau tem um pouco de cinema de rua como espaço de resistência.

Por causa de Três roteiros, fui percorrer minhas estantes para ver que outros textos cinematográficos tenho em casa: Hiroshima mon amour em inglês (Marguerite Duras); duas edições de Asas do desejo, uma em francês e a outra em alemão (roteiro de Peter Handke e Wim Wenders); Viajo porque preciso, volto porque te amo (Karim Aïnouz e Marcelo Gomes), numa edição maravilhosa do Sesc que vem com o DVD do filme; e Em trânsito (curta-metragem de Marcelo Pedroso), gentilmente enviado pela editora Vacatussa. Pouco, muito pouco, e metade garipado fora do Brasil.

Não tenho a menor dúvida de que roteiros de outros bons filmes brasileiros circulem em PDFs entre quem trabalha no setor, nas faculdades de cinema e cursos técnicos relacionados. Mas ver uma edição assim encadernada, encapada e vendida nas livrarias – que você pode manusear, sentir o peso e o cheiro da tinta – dá o famoso quentinho no coração.

4 comentários sobre “Os três roteiros de Kleber Mendonça Filho

  1. Há uma publicação muito boa de O INVASOR, de Marçal Aquino, o romance e o roteiro em um único livro.
    Parabéns pelo post. Vida longa ao Lombada.

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