Como já afirmei em posts anteriores, demorei a embarcar na literatura russa. Depois de ler Recordação da casa dos mortos, de Dostoiévski, no comecinho dos já longínquos anos 1990, voltei aos russos com a experiência traumática de O exército de cavalaria, de Bábel. Recuperado do trauma, fui impulsionado pela homenagem a Lima Barreto na Flip, em 2017, e resolvi fazer, aos poucos, um letramento russo, com leitura de clássicos, como Anna Kariênina, descobertas incríveis como a de O Mestre e Margarida e me encantar com novela icônica da literatura universal, A morte de Ivan Ilitch.

Para manter uma tradição pessoal de ler tijolaços no primeiro mês do ano, escolhi Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski, que repousava em nossa biblioteca a um par de anos. Renata havia comprado a edição comemorativa dos 150 anos da obra em alguma das incursões amalucadas na feira do livro da USP.
Mergulhei então na leitura de um dos clássicos mais populares de toda a literatura. E percebi isso ao postar frases do livro no perfil do Lombada no Instagram e nas minhas redes pessoais e receber comentários de diversos amigos e amigas.
Vou me deter um pouco no fio da história, muito conhecido, antes de explicar o porquê da necessidade de ler e reler Crime e castigo. Dostoiévski narra as desventuras de Raskólnikov, um jovem estudante provinciano que depois de abandonar a universidade, faminto e desesperado, comete um crime que poderia ser dado como perfeito – já que deixa poucos rastros – e que ficaria impune, não fosse sua enorme perturbação, seus dilemas morais e uma obscura tese de que todos os grandes personagens poderosos da História, de Julio Cesar a Bonaparte, foram assassinos absolvidos por seus grandes feitos. Essa é a tese que chamará a atenção de um juiz de instrução um tanto pedante, mas astuto e que levará o jovem à cadeia.
Em suas perambulações pelas ruas de São Petersburgo, Raskólnikov vai revelando ao leitor as doenças sociais que atingiam a Russia czarista, cruzando com personagens das mais variadas origens sociais e posições políticas e econômicas no regime. Dos miseráveis e bêbados, aos magistrados e policiais. A cada encontro, esbarrão ou conversa em uma taberna, o jovem vai dando pistas de que foi o autor do duplo assassinato de uma usurária e de sua irmã.
A obra de Dostoiévski traz à tona reflexões profundas sobre Justiça, ódio, tirania e mostra um punhado de personagens que buscam sobreviver com alguma dignidade em meio a uma realidade hostil. Os prédios da narrativa nada ficam a dever aos milhares de cortiços ocultos na paisagem paulistana. A comida é escassa, a educação é para poucos e uma imensa maioria vive sob severas condições, dependendo de esmolas ou de trabalhos pesados que rendem uns poucos copeques.
Em meio a isso, também existe amor e solidariedade. Uma das cenas mais marcantes acontece quando Raskólnikov empenha seus poucos rublos para ajudar a família de um funcionário público bêbado, que morre em um acidente, pagando o velório e alimentando sua numerosa prole. O jovem mal conhecia o morto, mas se apieda, em especial, de uma de suas filhas, que será marcante em sua vida, já na parte final do romance.
Se Dostoiévski fosse um autor norte-americano, certamente faria da captura e julgamento do jovem criminoso o ponto central do romance, com cenas de tribunal e longos detalhamentos do processo. Mas esse é o ponto que menos importa ao russo. Quando finalmente Raskólnikov é preso, em poucas páginas passamos de um breve relato do julgamento para a ida aos campos de trabalho forçado da Sibéria, em uma sequência final que é comovente. Embora o romance seja muito conhecido, vou parar por aqui para não entrar no território do spoiler.
A importância da tradução
O que mais me chamou atenção na caprichada edição que a 34 lançou em 2016 para comemorar os 150 anos da primeira publicação de Crime e castigo é a tradução, feita por Paulo Bezerra diretamente do texto original em russo.
A edição de 2016 é uma revisão de sua primeira versão para a obra, publicada em 2001. Para se ter uma ideia da popularidade do romance, já haviam sido vendidos no Brasil mais de 120 mil exemplares apenas dessa edição da 34, sem contar as inúmeras outras traduções já lançadas no passado.
A edição revista traz uma lista das principais personagens que é muito útil. Acredite, você vai recorrer a ela inúmeras vezes em meio à sopa de letrinhas dos nomes russos e dos muitos apelidos pelos quais as pessoas são chamadas.
Ao final, tem um precioso ensaio do tradutor que me leva a aconselhar a todos e todas que leram traduções anteriores a reler a obra. Isso porque, até 2001, todas as edições de Crime e castigo publicadas no Brasil eram versões de traduções do francês ou do inglês.
Bezerra, assim como seu mestre Boris Schnaiderman, foi um dos pioneiros a beber direto na fonte. E ele explica no ensaio que isso faz muita diferença, especialmente nas traduções feita a partir do francês, onde uma tradição “beletrista” levava os tradutores a “corrigir” a sintaxe de Dostoiévski e uniformizar pela ótica da norma culta os diálogos, matando uma das principais características da obra do russo, que leva para o papel os fluxos de pensamento, a coloquialidade e as questões psíquicas das personagens.
Ao ler a tradução de Bezerra isso fica muito claro. Frases truncadas, erros gramaticais, mudança de registro linguístico de um personagem para outro são marcantes ao longo das mais de 500 páginas do romance. A qualidade de uma tradução direta também fica clara em outra obra que li recentemente e que Bezerra cita no ensaio. A pequena e intensa novela O duplo, resenhada aqui.
Ler Dostoiévski é entrar no universo dos grandes temas humanistas. E se você leu versões traduzidas de outras línguas, pode ter certeza de que a releitura vai lhe dar outro olhar sobre a obra do gênio russo.
P.S.: a imagem que ilustra o post é detalhe de uma das gravuras que Evandro Carlos Jardim produziu especialmente para essa edição.
Um comentário sobre “Por que ler (ou reler) ‘Crime e castigo’?”