Dostoiévski, o Lima Barreto russo

Não, eu não estou louco, embora esteja começando a escrever sobre loucura. Claro que eu sei que Dostoiévski é anterior a Lima Barreto e o título foi só uma provocação pra atrair sua leitura. Sim, foi um truquezinho, mas, vá lá, releve. Se você clicar aqui verá que já chamei Lima Barreto de Dostô dos trópicos, ao resenhar o impressionante Cemitério dos vivos. Logo mais tratarei dessa forte presença dos autores russos no romance brasileiro do final da passagem dos séculos XIX para XX, o que não é bem uma novidade.

20190403_111004Desta vez, vamos falar de O duplo, que é, tecnicamente, o primeiro romance de Dostoiéviski. Foi publicado em 1846, dois meses após a edição de Gente pobre. Mas, dizem os biógrafos, aquele foi escrito antes. Se o primeiro contato de Fiódor com seus leitores teve sucesso de público e crítica, O duplo foi recebido com estranheza, por romper com alguns dos cânones do romance russo, especialmente na temática e na abordagem psicológica do personagem principal, o senhor Yákov Pietróvitch Golyádkin. Foi o começo da estética de Dostoiéviski, que viria a se firmar na sequência de sua vasta obra.

Em O duplo estamos às voltas com alguns conturbados dias na vida de  Golyádkin, um “conselheiro titular”, o que na Rússia Tzarista significava um cargo de amanauense, dos mais baixos na escala da burocracia estatal. Pietróvitch é um ser solitário, servido por um criado de modos um tanto instáveis, que em certo dia amanhece cheio de confiança. Conta os seus poucos rublos, sentindo-se quase um nobre milionário, e tem a certeza de ter sido convidado para uma festa na casa de um importante funcionário, que foi seu protetor em algum tempo remoto e lhe garantiu o emprego na repartição.

A partir dessa certeza, Dostoiévski constrói uma narrativa repleta de idas e vindas. Quebras de expectativas, mergulhando na mente perturbada de seu personagem. Este, depois de uma estranha consulta com seu médico, passa a perambular pela cidade, dando voltas, fazendo compras que vão muito além de suas posses, mudando rumos e aparecendo abruptamente em uma festa para a qual não foi convidado e da qual é expulso, sem nenhuma cortesia. A narrativa desse baile e do modo como o conselheiro titular se movimenta em meio à estranheza dos demais convidados é de tirar o fôlego.

No meio de uma noite gelada e chuvosa Pietróvitch se vê perambulando, derrotado, entre as muitas pontes de São Petersburgo. Até que uma estranha figura começa a aparecer em seu rumo. Um visão que parece vir de um espelho. Um gêmeo? Um duplo?

E aí começa a entrar em cena a narrativa psicológica de Dostoiévski, que vai brincando com o jogo de espelhos e sombras, do personagem e de seu duplo, deixando o leitor em suspense. Realidade, afinal o “gêmeo” assume um cargo na mesma repartição, onde conquista a estima dos colegas – algo que Golyádkin jamais teve – e recebe dos chefes as missões mais importantes no transporte e registro de documentos? Ou tudo fruto da imaginação de um sujeito que começa a perder a noção entre o real e a pura imaginação impregnada de uma forte sensação do estar sendo perseguido?

É nesse jogo de dúvidas que a trama vai ganhando reviravoltas, sempre recheadas pela incrível capacidade que Dostoiévski tem de armar diálogos incrivelmente bem escritos e naturais, como já comentei aqui. O autor russo certamente não é o primeiro a introduzir o tempo psicológico e o fluxo do pensamento em uma obra literária. Nem o pioneiro a tratar da loucura. Mas talvez tenha sido aquele que melhor colocou as sombras de um psique complexa em uma narrativa que é ao mesmo tempo simples e intrincada. Profunda.

O desfecho do romance impressiona pela expectativa criada em torno de uma nova festa (ou será a mesma, já que a noção de tempo fica totalmente nebulosa nas muitas voltas que a cabeça de Pietróvitch dá?) na qual nosso pobre herói, como é chamado pelo autor, pensa finalmente ter sido aceito no círculo dos poderosos chefes da burocracia estatal. Não posso contar esse final, porque seria entrar em um perigoso spoiler, pois é nessa festa que as pontas da imaginação do amanuense se ligam.

Críticos da obra de Dostoiévski e muitos de seus biógrafos encontram em O duplo uma  relação com a própria mente um tanto conturbada do escritor, como se ele estivesse colocando em palavras tudo aquilo que seu cérebro maquina. Para mim, a impressão mais forte é de quanto de sua obra, pelo menos daquilo que já li, se espelha e tem seus duplos em escritores do realismo brasileiro. Machado e, especialmente, Lima Barreto, para ficar em dois exemplos. Ambos publicamente leitores das obras seminais dos autores russos do século XIX e que deixaram em suas obras marcas muito evidentes dessa influência. Portanto, reafirmo, com um certo grau de ufanismo: Dostoiévski foi um Lima Barreto avant la lettre.

A edição de O duplo foi comprada numa tarde de consumismo literário na Festa do Livro da USP de 2018. Publicada em 2011 pela Editora 34, com tradução de Paulo Bezerra, tem incríveis ilustrações de Alfred Kubin, como a que ilustra o post, um alemão que esteve entre os muitos artistas a traduzir para as telas a riqueza dos personagens dostoievskianos, tema, aliás, do interessante posfácio de Samuel Titan Jr.

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3 comentários sobre “Dostoiévski, o Lima Barreto russo

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