O Cemitério Père-Lachaise, de Paris, talvez tenha sido o grande responsável pela ideia de visitar campos santos como parte de programação turística. O maior cemitério da capital francesa mescla centenas de túmulos de personalidades, que vão de escritores, generais e políticos a astros de rock e do cinema mundial com campas que são verdadeiras obras de arte. Em Buenos Aires, multidões vão ao Cemitério da Recoleta, arborizado, repleto de túmulos bonitos e, atração principal, atrás de vestígios da família Perón.
Ainda assim, muita gente torce o nariz para a ideia de aproveitar a viagem de férias e entrar nos cemitérios das cidades visitadas. Medo? Superstição? Sim, pode ser. Apesar disso, é crescente o número de adeptos desses passeios, a ponto de muitos cemitérios terem guias especializados, roteiros de visitas. E, na internet, além dos espaços voltados para histórias de horror, como o Recife Assombrado, existem perfis dedicados a cemitérios, como o brasileiro Necrotur, com um caprichado perfil no Instagram, que vai acumulando posts sobre campos santos de todos os cantos do país.
Vaguear pelos túmulos de um cemitério pode ser uma espécie de leitura dinâmica da história de uma cidade ou de determinados segmentos da sociedade. Mas ainda faltam guias e roteiros de visitas que possam atrair mais pessoas para dentro dos campos santos, que são lugares de memória.
Em São Paulo, ao que eu saiba, apenas o Cemitério da Consolação oferece informações aos visitantes e tem guias que contam as histórias dos túmulos, muitos feitos por artistas de renome como Brecheret, e de quem está enterrado ali, como os Matarazzo, artistas do modernismo e desconhecidos que se tornaram objeto de devoção popular. O cemitério também pode ser visto como um museu, para ser visitado com esse olhar.
Toda essa introdução, que nós, jornalistas, chamamos de nariz de cera, serve para apresentar uma bela iniciativa de contar histórias através da visita a um cemitério. Estou falando do Guia de visitação do Cemitério Israelita da Vila Mariana, publicado pela Narrativa Um, com apoio da Chevra Kadisha de São Paulo, a associação que administra os cemitérios da comunidade judaica no Estado. A coordenação do projeto e edição do livro são do historiador Roney Cytrynowicz, que teve parceria na pesquisa e na redação de Monica Musatti Cytrynowicz.
No texto de abertura do guia, Roney fala de judaísmo e suas simbologias. Se você não está familiarizado com os ritos judaicos, vai ter uma bela introdução, que explica também como a presença judaica foi se espalhando pelo Brasil a partir dos primeiros judeus que estiveram no Recife, durante a ocupação Holandesa do século XVII.
Começa então a narrativa da história da chegada dos primeiros imigrantes de ascendência judaica em São Paulo e sua preocupação com os ritos funerários da cultura israelita, que transcendem à religião. Nos primórdios, os enterros eram feitos em cemitérios gerais, com túmulos e inscrições copiadas dos rituais católicos. Até que a comunidade começou a ganhar corpo para conseguir enfim a autorização para criar um cemitério próprio. Surgiu o Cemitério Israelita da Vila Mariana, construído em terreno doado pela família Klabin.
Durante décadas, o Cemitério da Vila Mariana foi o destino final de milhares de pessoas da comunidade judaica paulista. O campo santo teve sua capacidade praticamente esgotada, o que levou a Chevra Kadisha a abrir nos anos 1970 o Cemitério do Butantã e, mais recentemente, um novo espaço em Embu das Artes. Isso porque, na tradição judaica, cada pessoa é sepultada sobre a terra. São vedados os túmulos coletivos e também a exumação das ossadas, salvo com autorizações especiais, tema que vou abordar adiante.
O guia propõe ao leitor cinco roteiros de visitação, chamando a atenção para aspecto arquitetônicos dos túmulos, como a influência inicial dos ornamentos e estruturas mais rebuscadas, copiados muitas vezes dos cemitérios católicos. No lugar de cruzes, Estrelas de David e outros símbolos judaicos, como esculturas de Torás ou Menorás e algumas esfinges. À medida que o tempo vai passando, e os roteiros fazem essa viagem ao longo do século XX, os túmulos vão ficando mais simples, tendência que depois seria a norma do Cemitério do Butantã, onde as lápides de mármore trazem poucos ornamentos, sem arroubos de verticalização.
Além da arquitetura e da arte, o guia vai apresentando uma história da comunidade israelita de São Paulo também através das pessoas ali sepultadas. É a memória em estado puro. Dos fundadores da própria Chevra Kadisha, os pioneiros das diversas entidades judaicas, educadores, cientistas, intelectuais, famílias de empreendedores, militantes de causas políticas, opositores às ditaduras que conturbaram a história brasileira durante todo o século XX, nos roteiros podemos entender como a comunidade se estabeleceu entre nós e conhecer toda sua diversidade, que aliás se revelou nos embates políticos das eleições de 2022, quando vozes significativas do judaísmo brasleiro se posicionaram firmemente a favor da democracia e contra as ameaças fascistas que ainda rondam o país.
Esse posicionamento remonta também a três histórias nas quais as tradições do rito judaico de sepultar seus mortos foram quebradas por exceções. A primeira, em 1975, quando o rabino Henry Sobel, corajosamente, enfrentou não apenas os rituais, mas a ditadura, ao dar ao jornalista Vladimir Herzog um sepultamento digno. Explico. Se aceitasse a versão de suicídio divulgada pela ditadura, a Chevra Kadisha enterraria Herzog em um canto do cemitério, junto ao muro, destinado a pessoas com mortes vexatórias.
Mais recentemente uma batalha jurídica e também a influência de setores progressistas da comunidade permitiram a exumação do corpo de Iara Iavelberg, psicóloga assassinada pela ditadura. Essa exumação permitiu a comprovação de que ela foi metralhada em uma emboscada, contrariando a versão oficial de tiroteio e resistência armada.
Por fim, e isso está contado no guia, a história das chamadas polacas, prostitutas de origem judaica que criaram seu próprio cemitério em Cubatão, no começo do século XX, para seguir a tradição. Um resgate histórico do campo santo levou à restauração dos túmulos e ao reconhecimento do valor sagrado daquele lugar.
Além dos roteiros de visita, com descrições de túmulos, seus ornamentos e materiais utilizados, Roney faz pequenas narrativas sobre personagens da comunidade, sejam pessoas famosas ou não. Além disso, entre cada roteiro há um texto sobre os cemitérios judaicos no Brasil e também a respeito da história dos cemitérios paulistanos, como a evolução da legislação que permitiu à comunidade ter seu próprio espaço para homenagear os antepassados.
Este é um exemplo que poderia servir de inspiração ao Serviço Funerário de São Paulo. Afinal, cada cemitério é também uma página da história da cidade. Um museu a ser visitado.
E pra não dizer que não falei de literatura, deixo como dica de leitura uma obra de Umberto Eco, sempre ele. No romance histórico O cemitério de Praga, publicado pela Editora Record, o genial italiano ambienta uma trama que junta satanistas, nazistas, católicos e judeus em torno teorias da conspiração que contaminaram a Europa. Tudo baseado em pessoas e histórias reais. E, claro, o Cemitério de Praga, que existe e sobreviveu, em escombros, à fúria nazista que abalou o mundo.
E vocês? Quais os livros que tem alguma ambientação em cemitérios que lhes vem à memória?
Ah, ficaram com vontade de comprar o guia e visitar o Cemitério da Vila Mariana?
O livro está disponível no site da Livraria Sefer: www.sefer.com.br
Para visitar o cemitério, procurem informações no site da Associação Cemitério Israelita de São Paulo: www.chevrakadisha.org.br/preserve/calendario. Fiquem atentos para as datas, que são móveis, porque o cemitério fecha em festas e feriados religiosos da comunidade judaica.
P.S.: na foto em destaque, o túmulo de Clarice Lispector, no Cemitério do Caju, no Rio de Janeiro. Em 2017, de busão, eu e Renata abrimos mão de uma tarde de sol na praia para ir reverenciar a maior escritora brasileira.