Textos vadios

Ouvi falar de Antônio Maria pela primeira vez ali pelos idos de 1987. Trabalhava na redação da TV Record (então ainda propriedade de Paulo Machado de Carvalho) e dois dos meus chefes – Paulo Markun e Dante Matiussi – eram sócios da recém-lançada revista Imprensa, que chegava de graça e fresquinha pra gente no mesão da redação. Em um dos primeiros números, veio um encarte especial que inaugurava uma série sobre os principais nomes do jornalismo brasileiro. E esse primeiro volume foi dedicado ao cronista, compositor, editor, diretor de televisão, radialista, bom vivant  e, claro, talvez sua maior qualidade, pernambucano. O texto trazia trechos de crônicas, frases e versos de canções que mostravam a facilidade com que o cara lidava com a língua portuguesa e como provocava o encantamento dos leitores e ouvintes. O nome ficou na cabeça, mas por muitos anos foi tudo que soube sobre Maria.

Nos anos 90, me embalei com a singela Valsa de uma cidade, cantada por Caetano Veloso. E ao mergulhar a fundo no carnaval do Recife, a partir de 2010, conheci os frevos carregados de lirismo que me levaram pelas ruas da cidade ou pelas ladeiras de Olinda. Mas havia pouco material sobre o Antônio Maria das crônicas. Morto precocemente em 1964, o escritor deixou milhares de textos publicados nos mais variados jornais. Mas ele foi um cronista da pré-história da tecnologia e poucos dos veículos onde publicou durante quase duas décadas sobreviveram aos nossos tempos e sequer tiveram seus acervos digitalizados.

Foi só com a publicação de Vento vadio, que reúne 185 crônicas, magistralmente organizadas por Guilherme Tauil, que pude, finalmente, constatar a genialidade de um texto que corre fácil, segura o leitor, faz graça quando precisa, é melancólico quando o autor assim se sente, é nostálgico especialmente quando se trata de lembrar da infância e, claro, de Pernambuco, com capítulos à parte para o engenho onde cresceu e o Recife onde se fez adolescente, jovem e adulto.

Uma introdução dá conta de um pouco da vida, curta, conturbada e intensa de Antônio Maria. Cronista de sucesso nos anos JK, pode se dizer que ele tomou para si o lema do Presidente da República e viveu 80 anos em 40, tamanha a presença dele nos mais variados segmentos do jornalismo brasileiro e a intensidade com que se jogou na vida.

As crônicas foram organizadas sem preocupação com a linearidade. Essa é a grande sacada da edição, porque os textos vão construindo uma unidade temática e um fio condutor que perpassa a vida do cronista, desde a infância, as reminiscências pernambucanas, o começo da vida adulta, as primeiras incursões no mundo da comunicação, os amores, as paixões por automóveis, boa comida e seu grande amigo, o bar.

As crônicas de Antônio Maria partem de sua vida pessoal, suas memórias, nostalgias e grandes saudades de pessoas e lugares para falar também de um Brasil que atravessava um raro momento entre duas ditaduras, período de 1945 a 1964, de onde vêm a maioria dos textos escolhidos para o livro. Era um Brasil que parecia ter encontrado um caminho de felicidade.

Para o leitor, as sensações vão de alegria ao ler histórias saborosas, como as estrepolias que Maria, ao lado de Fernando Lobo e outros amigos, aprontava nos apartamentos que alugavam juntos em Copacabana ou no centro do Rio, passeios saborosos de automóvel pelas ruas da cidade ou viagens em alta velocidade na Via Dutra, para anoitecer em uma boate de São Paulo ou descer a serra com garotas e amigos para namoros e bebedeiras nas praias do Guarujá. Sem contar as descrições minuciosas dos pratos preferidos e uma crônica que se destaca por fazer um roteiro gastronômico para os viajantes da ligação São Paulo-Rio. Um texto para comer com os olhos.

Mas a alegria dá também lugar à melancolia. Seja pela saudade extrema do Recife e de um passado de criança de engenho, seja pelos trancos amorosos, de uma pessoa que era extremamente sedutora, mas ao mesmo tempo carente. Não há citações recorrentes aos nomes de mulheres e namoradas, mas percebemos pela leitura quando o primeiro casamento acaba, ou então quando a relação com Danuza Leão começa a degringolar por conta de um ciúme doentio que lhe assalta. É nesse ponto que a vida de Antônio Maria começa a se encaminhar para o fim súbito, causado pelos descuidos com a saúde e com o coração, em todos os sentidos. Não por um acaso, as crônicas dos meses que antecedem o ataque fulminante que vai matá-lo em plena rua começam a ter a morte como um tema recorrente. E ela chega nos primeiros meses da ditadura recém instalada. O espírito livre do cronista não aguentaria os anos de chumbo.

Antônio Maria fez parte de uma geração de cronistas que deu ao gênero status literário. Era um tempo em que os jornais e revistas empilhavam em suas páginas talentos como Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, o príncipe dos cronistas, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Carlos Heitor Cony, Clarice Lispector e muitos outros que transitaram entre a poesia e o romance sem largar os textos curtos, escritos sem compromisso com o jornalismo factual, que poderiam partir do canto de um pássaro ou de uma noite de bebedeira com amigos para brindar os leitores com um respiro em meio ao noticiário.

De toda essa geração, a morte precoce e o fato de nunca ter publicado um livro em vida, fizeram Antônio Maria ficar em um limbo que agora essa edição traz para os leitores contemporâneos. Entre os muitos talentos da crônica brasileira, ele tinha o texto que talvez fosse o mais lírico, intimista e, ao mesmo tempo, que mais dialogava com os leitores. Se você for ler apenas um livro até o final do ano, recomendo demais o “Vento vadio”, editado pela Todavia.

Para terminar deixo o link para uma versão com três frevos de Antônio Maria que, como todo bom frevo, falam de saudade e que você certamente já ouviu. Por falar nisso, quanto tempo falta para o Carnaval mesmo? Por que o “Recife mandou me chamar”, ou, como diz o poeta e cronista:

“Que adianta se o Recife está longe
E a saudade é tão grande
Que eu até me embaraço”

ANTôNIO MARIA

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