Essa tal de Copa do Mundo

Esse é um blog boleiro, caso você ainda não tenha percebido. Jogamos no time dos que acham que futebol não é antônimo nem de inteligência nem de política – muitíssimo pelo contrário – embora nos entristeça que uma parcela grande dos protagonistas do jogo faça parecer que sim. A uma semana das eleições mais importantes do País, e a trinta dias de mais uma Copa do Mundo, a apropriação da camisa amarela como símbolo político taí para provar que futebol pode ser tudo, menos apolítico.

Mas apesar do tom sisudo do primeiro parágrafo (como não, no Brasil de 2022?) volto aqui depois de longos meses sumida para falar de Dona Copa, livro infantil de Thiago Corrêa Ramos (texto) e Eduardo Padrão (ilustrações) gentilmente enviado pela Vacatussa Editora. Thiago parte de uma experiência pessoal com suas filhas para compor uma história de apresentação da Copa do Mundo para as crianças pequenas que, pela primeira vez este ano, terão a oportunidade de vivenciar a competição – e, mais do que isso, ficar absolutamente confusas com a mudança que ela opera no comportamento dos pais, mães, famílias e agregados em geral.

Martinha é uma menina de quatro anos que não entende nada quando o pai chega em casa com uma sacola cheia de coisas para decorar a sala de verde e amarelo. Aparentemente sem motivo, a família se reúne em torno da televisão nas mesmas cores, se levanta para cantar uma música chamada hino com umas palavras esquisitas como retumbante, plácidas e fúlgidos, para depois roer as unhas por 90 minutos.

Nos dias seguintes, o pai continuou grudado na TV, mesmo sem vestir verde amarelo, o que a impedia de ver desenhos e novela. Martinha sente falta do seu “velho” pai de antigamente, que lhe dava mais atenção – e ele percebe. É quando finalmente começa a envolver a filha nessa tal de Dona Copa, explicando o que é, como acontece, porque é importante. Aí é que o livro começa a ficar interessante.

Ao se deparar com um álbum de figurinhas, Martinha chega à inevitável conclusão de que futebol é coisa de menino. É quando o pai conta que o nome dela é uma homenagem à maior jogadora de futebol brasileira. Aos poucos, o livro vai se revelando uma obra interessante pra falar sobre a relação das mulheres brasileiras com o futebol – relação que, assim como a dos meninos, é quase sempre construída em torno do envolvimento do pai com o esporte.

Mas, como sói acontecer, o natural é que essa paixão seja passada apenas para os filhos homens. Apesar do nome de jogadora, Martinha não é incluída nos preparativos para a Copa (o mesmo aconteceria se fosse um menino chamado Ronaldo?). O pai corre atrás do prejuízo, explica as regras do jogo para a menina em um campo desenhado a giz no chão, usando como jogadores as suas bonecas e bichinhos de pelúcia – num trecho ilustrado lindamente por Eduardo Padrão.

No fim, Martinha se envolve com a competição – fica feliz quando descobre que ano que vem tudo irá se repetir, pois tem a Dona Copa das meninas.

Nesse ponto, caiu uma lágrima.

Gosto de futebol desde criança por causa do imbróglio envolvendo o Campeonato Brasileiro de 1987, quando o Sport Club do Recife foi campeão contra tentativas sucessivas de tapetão do Flamengo e da imprensa carioca (já resenhei um excelente livro sobre esse tema). Naquele ponto, não estava em jogo só um troféu, mas a descoberta do que era ser nordestino e as implicações que esse fato traria vida afora.

Me reencontrei com o esporte adulta, quando passei a frequentar estádios ainda no Recife. Mas foi só quando me mudei para São Paulo que tive outro encontro: através do Museu do Futebol, a descoberta tardia de que as mulheres foram proibidas de jogar no Brasil por quase quarenta anos.

Deixa eu repetir em negrito: as mulheres foram proibidas de jogar futebol no Brasil por quase quarenta anos. Entre 1941 e 1979, praticar o esporte podia dar cadeia para metade da população brasileira (e deu, para centenas de mulheres). Tão violento quanto a proibição em si foi o apagamento desse fato da nossa história, tanto que ele é desconhecido da maior parte das pessoas.

Por isso a lágrima com a história de Martinha.

É muito especial assistir cada lentíssimo passo de desnaturalização do futebol como uma arena exclusivamente masculina, e Thiago e Eduardo o fazem com simplicidade e sinceridade. Ponto pra eles e para a Vacatussa, essa pequena notável editora que vem fazendo um trabalho incrível no Recife.

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