Porque ler ‘Ainda estou aqui’

Então você chegou a este post depois de ver a Fernanda Torres TOTALMENTE PREMIADA no Globo de Ouro de 2025 como melhor atriz de drama de todo o mundo. Bem-vindo, bem-vinda, bem-vinde.

Além de levar mais de três milhões de pessoas ao cinema para ver um filme nacional (número contabilizado até a publicação desse post), o filme Ainda estou aqui, de Walter Salles Júnior, está provocando o benéfico efeito de levar as pessoas ao livro de Marcelo Rubens Paiva que o inspirou – foi exatamente o meu caso. Eu havia lido recentemente o Feliz ano velho, primeiro livro de Marcelo, mas ainda não tinha me animado a continuar nas suas obras até ver o filme.

Se você está aqui, provavelmente está se perguntando o quanto do livro está no filme. A resposta é: muito, mas não tudo.

O filme, obviamente, precisou fazer escolhas e deixou muito de fora no trabalho de condensar a narrativa sobre a vida de Eunice Paiva, viúva do ex-deputado Rubens Paiva, um dos primeiros desaparecidos da ditadura no Brasil. No filme, o foco principal é como Eunice lida com o sequestro e desaparecimento de Rubens, enquanto o livro mergulha muito mais eu seu processo de perda de memória, por conta da Doença de Alzheimer, e na relação entre ela e Marcelo.

Memória é o principal tema do livro: a memória pessoa de um ser humano, a memória nacional que, no caso do Brasil, foi estraçalhada. Até hoje catamos os cacos tentando remontar o vaso frágil que já fomos um dia.

Assim, o livro Ainda estou aqui se desenvolve em dois tempos: um curto, em que Eunice Paiva e sua família descobrem o Alzheimer e se veem às voltas com seus efeitos; e um tempo mais longo, no qual Marcelo busca entender o que de fato aconteceu com seu pai. Os dois tempos se encontram no presente do livro, publicado originalmente em 2015, quando a perda de memória de Eunice já era um fato consumado, enquanto a verdade do desaparecimento de Rubens ganhava contornos mais definidos, a partir da resiliência da própria família, encorpada pelo trabalho da Comissão da Verdade.

“A memória é a capacidade de organizar e classificar as recordações. Não existem arquivos. A acumulação do passado sobre o passado prossegue até o nosso fim, memória sobre memória, através de memórias que se misturam deturpadas, bloqueadas, recorrentes ou escondidas, ou reprimidas, ou blindadas por um instinto de sobrevivência”.

O livro tem esse sabor agridoce com relação ao envelhecimento de Eunice bem mais forte do que no filme: é justamente quando eles chegam tão perto de descobrir o que aconteceu com Rubens que ela própria começa a se desconectar de tudo por causa da doença, o que força à reconfiguração das suas relações com os filhos e à perda da autonomia, algo que ela só conheceu mesmo depois do desaparecimento.

É só no livro que entendemos melhor a natureza do relacionamento de Eunice com a prole – distante, e mais fria do que eles gostariam, pelo menos do ponto de vista de Marcelo. “Minha relação com ela era de uma objetividade abismal”, escreve ele, que não tem recordações de carinhos ou afagos efusivos, tampouco de grandes broncas. Eunice fica mais complexa e interessante nas lembranças de Marcelo, uma mulher que se transformou várias vezes ao longo da vida:

“(…) uma Eunice que para variar se renovava, encerrava um luto na medida do possível e a que meu pai, se por um milagre reaparecesse, teria que se readaptar, uma mulher nova e independente, que não serviria uisquinho para ele, porque estaria numa reunião na ONU”.

Além dessa dupla linha do tempo, o livro também incorpora muito de trabalho jornalístico. Marcelo junta para o leitor os diversos pedaços de informação que a família conseguiu levantar ao longo de décadas para remontar o que aconteceu com Rubens Paiva. Ficamos sabendo, inclusive através da transcrição de documentos oficiais, que o ex-deputado morreu no máximo 48 horas depois do desaparecimento. Há testemunhos de que seu torturador pulava em sua barriga, num nível de violência que chocou até outros militares.

[Alerta de spoiler nos dois próximos parágrafos]

Duas cenas muito impactantes ficaram de fora do filme, e estão narradas no livro: na primeira, com a casa ainda invadida por policiais, Marcelo foge para jogar bola na praia. Quando volta, leva uma bronca de um deles. Eunice pergunta como ele conseguiu fazê-lo, e o incumbe de repetir a façanha, mas desta vez levando um bilhete para a vizinha. O recado informava que Rubens tinha sido levado e pedia para que ela avisasse aos amigos que não fossem até lá, para ninguém mais ser preso. É abrindo o bilhete antes de entregá-lo à vizinha que Marcelo descobre o que tinha acontecido com o pai.

A segunda cena é ainda mais forte. Já com o atestado de óbito de Rubens em mãos, Marcelo conversa com Eunice sobre o que teria levado os militares a prendê-la junto com a filha. Até onde se sabe, Rubens não cedeu à tortura e se recusou a falar qualquer coisa que pudesse comprometer outras pessoas. Marcelo concluiu que Eunice e Eliana foram levadas ao quartel para ameaçá-las na frente dele – como, acho que vocês conseguem imaginar. Eliana era então uma adolescente. O plano dos militares deu errado porque Rubens já tinha morrido quando elas chegaram no local da prisão.

[Fim do spoiler]

Ainda estou aqui, o filme, recebeu críticas de pessoas de esquerda por não tratar de como a ditadura afetou pessoas pobres, pretas e moradores de favela. Entendo o incômodo, até certo ponto. Sim, é a história de uma família branca e rica, cujo pai rico e politicamente bem relacionado morreu de porrada por agentes do estado; teve o corpo esquartejado e jogado aos pedaços em local incerto e não sabido até hoje, levando a família a vender bens, recorrer a amigos (ricos) para segurar as pontas e fazendo Eunice se reinventar como advogada aos 49 anos de idade. Ao menos eles tinham essa possibilidade, mas não esqueçamos o principal:

Rubens Paiva, homem branco, rico e politicamente bem relacionado morreu de porrada em decorrência da política oficial do Estado brasileiro; teve o corpo esquartejado e jogado em local incerto até hoje, lançando a família em um inferno de indefinição e mentiras que nunca terá fim.

É isso que acontece numa ditadura: nem a elite está à salvo quando o regime se sente ameaçado, porque a finalidade do regime é – bem – manter o regime.

E não se trata de um caso isolado. Para ficar apenas em livros que já resenhamos aqui no blog, vejam só o que aconteceu com a empresa de aviação Panair durante a ditadura.

Com toda a certeza do mundo, pessoas pretas, populações indígenas e rurais, artistas, jornalistas, homossexuais e pessoas de outros perfis específicos e até hoje discriminados foram também duramente perseguidos, mortos, esquartejados, desaparecidos e vilipendiados. Nada disso invalida a experiência particular daquela família específica, daquela mulher específica, contada por aquele filho específico, de um ponto de vista que é, obviamente, específico.

Me entristece que as críticas ao filme tenham virado uma competição por quem sofreu mais e me entristece ainda mais que o campo progressista brasileiro seja tão facilmente divisível.

Estamos em 2025 e faz exatamente dois anos que o Brasil sofreu outra tentativa muito séria de golpe de estado. A gente não pode esquecer que está cheio de gente por aí doida pra espatifar novamente nossa frágil democracia.

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3 comentários sobre “Porque ler ‘Ainda estou aqui’

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