Dois amores africanos

Mia Couto e José Eduardo Agualusa juntos. Uau.

Foi na sexta-feira passada (25/9/2015) durante a Pauliceia Literária, evento realizado pela Associação dos Advogados de São Paulo bem no centrão velho da capital. Enquanto as ruas iam sendo tomadas por pessoas saindo do escritório para abrir os trabalhos etílicos do fim de semana, outras tantas se acotovelavam no pequeno hall da associação para garantir um bom lugar no auditório.

O Lombada Quadrada não pretendia fazer cobertura de eventos literários, mas como houve uma citação mui honrosa ao centro do universo – também conhecido como Pernambuco – resolvemos abrir uma exceção.

Realismo mágico, as muitas áfricas, a alteridade, a lusofonia contemporânea e o racismo entraram na conversa que, passada a primeira pergunta, deixou para trás o tema proposto pela mesa – o lusotropicalismo.

Segundo o curador e mediador Manoel da Costa Pinto, a ideia era fazer uma provocação. Lusotropicalismo era o termo usado por Gilberto Freyre para explicar as particularidades da colonização portuguesa, adotado posteriormente também como discurso oficial pela ditadura Salazarista para limpar a barra de Portugal, sob o argumento de que a mestiçagem era a prova de uma colonização amigável (“vejam só, a gente até teve filhos com as negras e índias”).

“Quando falamos de mestiçagem, já entramos em um terreno movediço, porque pressupõe que existe uma pureza”, abriu Mia Couto. Agualusa trouxe a questão mais pra perto, argumentando que, os países de Língua Portuguesa vivem hoje uma troca cultural sem precedentes:

“A lusofonia é algo que existe de fato e que ultrapassa e muito a vontade dos governos. Está sendo construída pela sociedade civil e é uma lusofonia mais democrática, porque não há um centro difusor único. A juventude portuguesa está se apropriando do Português de Angola”, afirmou.

Os dois admitem uma similaridade grande em suas obras e trajetórias pessoais, Mia em Moçambique e Agualusa em Angola. Ambos trabalham com algo do realismo mágico que conheceram por Jorge Amado e que se popularizou na América Latina. E os dois têm por princípio que a literatura é um exercício de reconhecimento do outro, um processo que demanda a compreensão sobre as dinâmicas de lembrança e esquecimento intrínsecas à formação de seus países, colonizados e recolonizados nos últimos cinco séculos.

Para Mia Couto, este ser o outro é um caminho para construção da sua própria identidade como escritor; para Agualusa, é também um caminho obrigatório ao estabelecimento das identidades nacionais, inclusive no caso dos Países que vivem fluxos migratórios recentes. Inglaterra e Portugal, segundo ele, já expressam essa busca do “quem somos hoje” por meio de sua literatura, como já acontecia na França.

“A questão da descoberta do outro é inadiável”, diz Mia Couto. “Nunca tivemos tanto medo do outro, da ameaça que ele representa, do lugar que está sendo tomado. E não temos medo das diferenças – temos medo das semelhanças. Não tenho esperança de que a literatura faça grandes mudanças, mas esta ela pode fazer, contando as histórias do outro”.

Aí o mediador tentou fazer uma comparação com a literatura contemporânea brasileira que, segundo ele, não quer mais tratar da identidade nacional, e que teria abandonado o tal realismo mágico.

“Você está falando como paulista, não como brasileiro”, retrucou Agualusa. Palmas da plateia (confesso que fiquei surpresa com a capacidade coletiva de autoironia). “Há uma desterritorialização, autores que não escrevem sobre seus países. Eles não escrevem sobre nenhum lugar, na verdade. Ou melhor, escrevem sobre o lugar próprio da literatura. Já é assim em Portugal – Valter Hugo Mãe escreveu um romance que se passa na Islândia. E está acontecendo também no Brasil”.

“Mas os escritores brasileiros agora só escrevem sobre os ambientes urbanos…”

Em Pernambuco não é assim” (meu coração deu um triplo mortal carpado ao som de Ciranda de Maluco). “Tatiana [Salem Levy, talvez?], mesmo Milton Hatoum”, exemplificou. Palmas fervorosas de uma senhora do meu lado.

A mesa terminou com longos elogios a Fernando Pessoa e Manuel de Barros, ambos considerados forte influência tanto por Mia Couto quanto por Agualusa.

Saí do evento com mais dois livros do angolano e a frustração de não ter podido esperar para conseguir um autógrafo. Mas que centenas de pessoas tenham se reunido para ouvi-los, de peito aberto, é daquelas coisas que reacendem a esperança na humanidade.

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