Eu, repórter de mim

Se eu fosse um computador, seria um daqueles antigos, sem HD, em que a informação era armazenada naqueles disquetões pretos. Os “disquetes” são meus caderninhos de anotações, dos quais sou quase absolutamente dependente para registrar o que escuto. Se eu não escrevo, não lembro. Isso significa que eu tomo notas de maneira psicótica, especialmente quando o assunto é literatura. Até a mão doer e os dedos ficarem dormentes, páginas e páginas de garranchos com frases e observações sobre o que estou ouvindo.

Mas a mesa com David Carr na Flip 2014, estranhamente, rendeu apenas essa mísera folhinha de Moleskine rosa-shoking quadriculado:

IMG_4883TENDA DOS AUTORES – MESA 16
NARRADORES DO PODER”
Com David Carr
        Graciela Mochkovfky

Mediação: João Gabriel de Lima

JGL – David Carr inaugurou um novo estilo, a autoreportagem, em que ele fez o próprio perfil. É um dos personagens do documentário “Page one”, sobre o New York Times. Livro: “Noite da arma” (sic).

DC – ‘Eu realmente não me lembro de nada. E se eu lembrasse de algo, certamente seria uma memória falsa’

(Paralelo com literatura de testemunho).

Ele não me impressionou muito. Lembro da postura displicente e o ar entediado diante da plateia de mais de 800 pessoas em Paraty. Mas essa coisa da autoreportagem pareceu interessante e resolvi incluir A noite da arma na sacolinha de compras. E finalmente este mês, por conta do Desafio dos 52 livros, chegou a hora de lê-lo.

IMG_4898David Carr foi viciado em cocaína por mais de 10 anos, quando estava no início de sua atuação como repórter no estado americano de Minnesota. Cheirava, injetava e fumava em doses cavalares. Para conseguir pó, envolveu-se com o tráfico e, do caso com uma traficante, teve filhas gêmeas que nasceram prematuras. O parto antecipado aconteceu numa noite em que os dois estavam fumando crack. De alguma forma, o nascimento das filhas acabou fazendo-o parar de se drogar, não sem antes entrar em incontáveis brigas, ser preso diversas vezes, entrar e sair de programas de recuperação e de praticamente arruinar a carreira profissional.

Vinte anos depois, com a vida no lugar, ele resolveu voltar à própria história. Mas sem lembrança alguma dos detalhes daqueles anos – e com absoluta certeza de que o pouco que lembrava não era confiável – sua única saída foi aquela adotada no cotidiano da profissão: entrevistar os amigos e parentes para, por meio deles, descobrir quem foi David Carr. O resultado é uma autobiografia fora da caixa.

A construção da memória aparece como tema central, tratado com a propriedade de quem utilizou as técnicas de reportagem para confrontar versões de fontes diferentes – sendo que o próprio autor é sempre uma delas.

O episódio que dá nome ao livro é emblemático: numa noite de fúria e cheiração, Carr briga com um amigo e invade a casa dele, chutando a porta. Na confusão, alguém puxa uma arma. A lembrança que o autor cultivou por duas décadas sempre o incomodou – nunca imaginara este amigo com um revólver na mão. Durante a apuração para o livro, ele descobre que a história é ainda mais complexa e surpreendente.

Não vou fazer spoiler, mas posso dizer que esse episódio é o ápice da discussão posta em A noite da arma: a imagem que um indivíduo tem de si próprio como uma construção a partir de memórias inventadas e livremente manipuladas ao longo do tempo, consciente ou inconscientemente. David Carr teve a sacada de dissecar sua autoimagem com ajuda das pessoas ao seu redor, podendo assim pintar um retrato cubista de si mesmo. Ou quase.

O livro é recheado de autoironia. Mas aqui e ali escapam algumas incoerências entre a inevitável autocrítica e o discurso atual do repórter de si mesmo. Algo como a declaração “eu fui um babaca” rodeada de fatos, diálogos e depoimentos que tendem a demonstrar o contrário. Como se o autor conscientemente soubesse que a autocrítica é inescapável num livro de memórias de um drogado – mas, ao mesmo tempo, fizesse um esforço pra aliviar a própria barra.

(Pensando bem, talvez ele apenas reproduza a própria natureza da construção da memória autorreferente. Hmm. Engenhoso).

A noite da arma é também um livro divertido, apesar do tema pesado, e que tem o grande mérito de não fazer nenhum libelo antidrogas. Um ótimo exercício de jornalismo.

Um comentário sobre “Eu, repórter de mim

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s