As sombras de Modiano

avenidas perifericasFiguras obscuras, transitando nas sombras de um regime de horror, usando o caos como aliado para negócios ilícitos e enriquecimento. Falo de Avenidas periféricas, de Patrick Modiano, minha segunda incursão na obra do francês, prêmio Nobel de Literatura em 2014. Antes, li Ronda da noite, que está resenhado aqui. Como bem lembrou o psicanalista Contardo Calligaris, em artigo recente na Folha de S. Paulo (leia neste link), as histórias à Modiano se passam na Paris ocupada pelos alemães, durante a Segunda Guerra. E sempre há a iminência de algum dos personagens descobrir um judeu infiltrado entre eles. Não se trata de uma fórmula para vender romances baseados na Guerra, como faz Hollywood com suas centenas de filmes sobre o nazismo. Trata-se de uma obsessão “modianesca” para revisitar um passado que não pode ser esquecido.

Avenidas periféricas nos transporta a um café nos arredores de Paris, em uma pequena cidade na beira da floresta de Fontainebleu. A narrativa começa pela descrição de uma foto. Nela, três sujeitos se esparramam pelas cadeiras do café. Ao fundo, uma mulher no balcão. Um deles, é o pai do narrador. E este se “transporta” para o ambiente daquele café. Entra na foto, feita 20 anos antes. E procura entender seu pai. Um judeu de origem egípcia, vivendo clandestinamente em uma França ocupada por nazistas. Ele convive com um grupo de artistas, jornalistas e contrabandistas que se alimentam do ódio aos judeus e exploram os bens que estes deixam em suas casas ao fugir da implacável perseguição.

Avenidas é um romance que busca explicações. O narrador, ao entrar como intruso na história, tenta entender os motivos que levaram o pai a viver diariamente cercado por possíveis delatores e carrascos. Melhor seria dizer sobreviver, ganhando a vida com golpes, como o de vender livros de autores famosos supostamente raros, com autógrafos falsificados.

Em todo o momento, ficamos em dúvida sobre a real presença do filho naquele cenário. Terá mesmo sido parceiro do pai no golpe dos livros falsificados? Trabalhou, de fato, para o editor de revistas que são usadas para detratar os perseguidos pelo regime e exaltar a grandeza do nazismo? Morou na pensão do café, cercado pelas cantoras de cabaré e prostitutas que viviam em torno daquele grupo?

Modiano brinca com a imaginação do leitor, colocando-nos como espectadores da pesquisa do narrador para o futuro romance e de suas incursões imaginárias no universo vivido pelo pai, décadas antes.

Circulamos pelas avenidas e estradas periféricas de Paris. Locais escolhidos pelo bando para viver um idílio de sexo, música e álcool, regado pelos milhares de francos obtidos com as atividades ilegais. A todo o momento, o contraste da alegria desse grupo com o vazio das casas deixadas para trás pelos judeus, o silêncio das ruas e a iminência do desastre salta aos olhos do leitor.

Avenidas periféricas, publicado em 1972, é mais um dos inúmeros e necessários registros de um período que a humanidade jamais deve esquecer. E nunca repetir.

Li a impecável edição portuguesa da Porto Editora, cuja capa informa que o romance, lançado em além mar no ano de 2015, em primeira edição. Se por lá ficou inédito por tanto tempo, imagine no Brasil, onde Modiano é um ilustre desconhecido, apesar do Nobel.

Preciso de mais Modiano.

A foto em destaque é de uma instalação de Olafur Eliasson, exposta na Pinacoteca de São Paulo em 2012.

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