Enquanto lia Ronda da noite, romance do Nobel de Literatura, Patrick Modiano, as imagens de Alemanha ano zero, filme de Roberto Rossellini, não me saiam da cabeça. Fiz um paralelo entre as duas obras. Não apenas pelo momento histórico de ambos, situados no fim da II Guerra Mundial. O que ligou o livro, de 1969, ao filme, de 1948, foi a busca surda e desesperada de seus personagens, vivendo entre os escombros da guerra, em um limbo no qual só resta tentar sobreviver ao caos.
No filme, um garoto busca alimento e esperança em uma Berlim destruída e ocupada por soviéticos e americanos. Impera a lei do mais forte. O menino Edmund se depara com nazistas que tentam se safar na nova ordem que está se estabelecendo. Os ingredientes são guerra suja por comida, cobiça, traições e relações promíscuas entre soldados, civis famintos, criminosos de guerra que tentam a todo custo limpar sua barra para a nova vida. E a vida de Edmund, no fim das contas, vale muito pouco. É um filme pesado, cru, direto, que vale ser visto. Uma joia do realismo italiano no cinema.
No romance de Modiano, temos uma narrativa em camadas que vão se superpondo e formando a história obscura de um francês, ainda com a guerra em curso, que transita pela resistência e por um grupo de pessoas que fazem negócios escusos sob a proteção do escudo nazista. Corrupção, tortura, mortes dão o tom. E, assim como no filme, todos buscando uma estratégia de sobrevivência. Serão eles resistentes como as baratas? Oportunistas como os ratos? Ou apenas espécies de zumbis que vagam sem destino em meio à falta de governo, de leis, em uma época na qual não há qualquer vestígio de civilização.
Foi minha primeira leitura de Modiano, autor consagrado e, até o Nobel, praticamente desconhecido pelas editoras brasileiras. Ronda da noite, publicado pela Rocco, faz parte de uma trilogia publicada no final dos anos 1960, tida como o ponto alto da obra de Patrick Modiano. Vou me aventurar nos outros dois livros. E conhecer mais sua obra. Que é mais consistente, muito mais, do que a do histriônico Michel Houellebecq.
Ótima literatura, em um livro curto, mas difícil de ler, pois exige da gente atenção e a montagem de um quebra-cabeças mental para entender quem é quem na trama. Você demora algumas páginas para achar o narrador, que é ocultado de forma muito intrigante no começo da narrativa. E vai se surpreendendo com as duas (ou três, ou múltiplas) faces desse agente duplo, triplo, que se imiscui nos dois lados da guerra, por não ter lado nenhum e por querer sobreviver.
2 comentários sobre “De ratos, baratas e sobreviventes”