Incômodos desejos

20160301_091810Não é fácil ler Elfriede Jelinek. Em seu romance Desejo, não há sequer uma frase objetiva, nenhuma linha sem uma metáfora desconcertante ou um jogo de palavras nada óbvio.

Ler Desejo incomoda. A cada frase, briga-se com o livro por uma tentativa de entendimento, por mais mínima que seja. Desistir é impossível, pois não há um enredo claro por trás dessa batalha linguística. Ao leitor, só restam as palavas. E o que as palavras revelam é ainda mais incômodo do que a construção pouco ortodoxa da autora austríaca, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura em 2004. 

Desejo, o título, pode ser lido como uma ironia, ou como um paradoxo. Pois o livro trata de relações de poder que se exprimem principalmente pelo sexo. Numa vila do interior austríaco, a personagem Gerti é uma bela mulher cujo cotidiano está atrelado às vontades (e ao dinheiro) do marido, dono de uma fábrica de papel, e do filho-herdeiro, ainda uma criança.

A relação entre Gerti e o diretor é de completa submissão;  o sexo entre eles, quase sempre violento, tratado com palavras chulas, é um direito do macho e uma obrigação da fêmea, que sofre. Porém, essa relação é também uma troca: por sua disponibilidade, Gerti tem dinheiro suficiente para posar de primeira-dama da comunidade; é invejada por outras mulheres enquanto percorre as lojas comprando roupas de que não precisa. A troca não é justa, mas (e este é um não-dito) é a possível como âncora para uma vida sem outras perspectivas.

Assim, o machismo é um dos temas mais prementes do livro, centrado em grande parte nas trocas (e ausências) entre Gerti e seu marido. Mas o diretor cataliza também várias outras críticas à figura do poder centralizado no homem: como dono da fábrica, controla a vida dos seus funcionários e os obriga a participar de um coral, para seu próprio entretenimento. Como pai, obriga o filho a estudar violino e a praticar esportes, “essa dolorosa nulidade”, nas palavras da autora.

O consumismo também recebe sua parcela de crítica em Desejo, como expressão de uma comunidade vazia de sentido, numa sociedade em que não há qualquer aspiração mais elevada do que ir levando, sem questionamentos. Sexo, consumo e machismo por vezes se misturam:

O sexo, exatamente como a natureza, não anda sem sua comitiva, sua pequena coletividade de adeptos de produtos e produções para desfrutar. Ele é simpaticamente coroado de artigos top de linha da indústria têxtil e de cosméticos. Sim, e talvez o sexo seja a natureza do ser humano; quero dizer, a natureza do homem consiste em correr atrás de sexo, até que ele, visto no todo e em seus limites, se torne tão importante quanto aquele.  

Na boa edição em português da Tordesilhas, o posfácio de Luiz Krausz descortina o contexto em que o livro foi escrito e se torna essencial para o entendimento mais profundo das questões colocadas. O que para o leitor brasileiro pode ser lido especificamente como um grito contra a opressão do machismo, tem uma camada mais profunda que reflete a história recente da Áustria.

Krausz explica que Desejo é também uma grave denúncia  contra a sociedade de um País que entrou o século XX como um império cosmopolita e chegou ao meio dele sócio de uma derrota, após uma não muito bem explicada adesão ao nazismo. Quando Jelinek critica estruturas de poder, portanto, ela teve uma intenção menos universal do que parece a princípio (e que ainda assim pareça universal é um grande trunfo do livro).

Filha de um químico judeu que escapou da perseguição nazista em função da especificidade de seus conhecimentos, Jelinek era também cria de uma aristocrata à moda antiga. Assim, estudou música desde muito pequena, com a intenção de que se tornasse uma Wünderkind, uma criança prodígio, como Mozart. Chegou a estudar no Conservatório de Viena e formou-se como organista, antes de se virar escritora. A crítica, portanto, é a um modo de vida e a uma sociedade que ela viveu por dentro, e numa posição privilegiada.

Pessimista em cada palavra, Desejo é um livro extremamente político, que questiona estruturas e mostra como as distorções sociais operam na prática e no inconsciente coletivo. Um verdadeiro desafio ao leitor.

3 comentários sobre “Incômodos desejos

  1. Adorei a resenha… gosto muito de livros que ambientam outras culturas e uma sociedade diferente. Milan Kundera, Khaled Hosseini entre outros… vou colocar como meta de leitura…

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