Até maio passado, Emmanuel Carrère era um perfeito desconhecido para os autores deste blog. Assim como Modiano, Carrère se inscreve naquela categoria de escritores de grande sucesso e prestígio, que, por escreverem em francês, são ignorados por nosso mercado editorial. Também aconteceu na mesma medida com Le Clezio. Daí, um prêmio, um filme baseado em um romance ou uma grande polêmica, como a criada em torno de Submissão, de Michel Houllebecq, outro recém “descoberto” pelas editoras, fazem com que o autor surja em nossa pobre cena de consumo literário.
Carrère chegou a nós pelas telas do cinema, em O adversário, romance baseado na história real de um falso médico que, descoberto, matou a família. É um filme perturbador e o livro já está em minha lista de interesses.
Eis que chegamos ao livro que é tema deste post. O reino, lançado em 2015 na França, alcançou imediatamente a lista de mais vendidos, com mais de 300 mil exemplares rapidamente devorados pelos franceses. Chega agora por aqui, em ótima edição da Alfaguara. São mais de quatrocentas páginas. E uma leitura instigante, embora, por vezes, cansativa.
Emmanuel Carrère faz um relato que mistura altas doses de depoimento pessoal com relato histórico e um fértil exercício de imaginação.
Começamos por conhecer a relação de Carrère com o catolicismo. Criado em um ambiente agnóstico, embora declaradamente católico, o autor, já maduro e bem sucedido como escritor, pensa ter uma revelação. E mergulha fundo na religião, tornando-se não apenas um crente, mas um seguidor entusiasmado do evangelho e adorador da figura de São João, a ponto de batizar o filho como Jean Baptiste. A crença dura algum tempo. E então Carrére faz o caminho de volta para o agnosticismo, tornando-se um crítico feroz da religião, sem, no entanto, deixar de estudá-la, a ponto de ser um dos co-autores de uma tradução da bíblia feita por pensadores ateus em parceria com alguns dos principais exegetas da atualidade.
A obsessão de Carrère pelas histórias do novo testamento resulta na investigação da vida de Paulo, o apóstolo. O percurso narrativo escolhido pelo autor foge do romance histórico tradicional, gênero pelo qual ele demonstra forte desprezo. Acompanhamos as divagações pessoais de Carrère, misturadas a exercícios de imaginação nos quais ele vai preenchendo, com hipóteses, as muitas lacunas dos episódios contados nos evangelhos a respeito da vida de Cristo.
Lucas, o evangelista e também autor da “Carta aos apóstolos” do novo testamento é a fonte principal da pesquisa de Carrère. Na “Carta”, Lucas conta a história de Paulo. Sua conversão na estrada de damasco, seu périplo pelo oriente para difundir a vida desse “sábio judeu” que propunha uma nova forma de enxergar a relação com deus.
O que intriga Carrère é o modo como Paulo constrói uma ruptura com o judaísmo e contraria os seguidores mais próximos de Jesus, especialmente Tiago e João, lançando as bases de uma teologia que nega o judaísmo, cria novos rituais, flerta fortemente com ideias antissemitas e aproxima a seita dos romanos, buscando aceitação no império que vê sua religião politeísta se enfraquecer diante daqueles fanáticos que ceiam o corpo e o sangue de um autointitulado filho de deus. Esta aceitação se dará quase três séculos depois. Mas as bases da contaminação do império pela seita vinda da Judeia foram lançadas nas peregrinações de Paulo e Lucas por lugares onde hoje estão a Turquia, a Grécia e a Macedônia.
Lucas, em sua “Carta aos apóstolos” e Paulo, em suas inúmeras epístolas enviadas às recém criadas comunidades cristãs de Éfeso, Tessalônica e outras, forjaram uma igreja. Uma não. Muitas. Pois é nessa fonte que irão beber todos os criadores das milhares de facções do cristianismo que hoje se digladiam para tentar vencer o campeonato de “quem-é-a-verdadeira-igreja-de-cristo”.
O reino pode ser um livro pesado para quem tem uma religiosidade que não aceita questionamentos. Certamente, se lido por líderes cristãos conservadores, pode ser até mesmo amaldiçoado, proibido, boicotado, como tantas outras obras que tocam no assunto de forma crítica têm sido perseguidas.
Mas os leitores curiosos, sejam ou não seguidores de alguma religião, terão diante de si uma obra que transborda originalidade, humor e sarcasmo, vindos de um autor que não tem medo de destilar veneno.
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Um comentário sobre “O inventor de igrejas”