Verdade ou ficção?

20160920_130522Ninguém pode acusar Jacques Fux de ficar na zona de conforto. Brochadas, seu segundo romance, é praticamente um ataque kamikaze: o narrador, também chamado Jacques, faz um inventário de sua vida sexual, tentando entender os motivos pelos quais brochou com cada uma das ex-namoradas. Estabanado emocionalmente, ele (o narrador, espero) faz comentários jocosos sobre essas memórias traumáticas e suas protagonistas, numa posição bem chauvinista, fabricada para provocar o riso fácil nas almas menos combativas. Mas esse é só um resumo raso de um livro que pode ser avaliado de forma bem mais complexa.

Brochadas é arriscado na medida em que, ao dar o seu próprio nome ao narrador – que também é judeu como ele, escritor iniciante, com a mesma formação e o mesmo histórico acadêmico -, Jacques joga um jogo a que os leitores não estão acostumados: o de borrar totalmente os limites entre realidade e ficção dentro de uma obra artística, causando uma confusão intencional e às vezes inescapável, mesmo pra quem faz uma busca ativa por enigmas e mensagens cifradas em meio ao texto. O risco que o autor corre é o de ser tomado como o narrador, como se ambos fossem um só. E se chegamos à conclusão de que o narrador bem merecia levar uns sopapos, quem corre o risco real é o autor, o único dos dois a levar uma existência tridimensional. 

Dentre as várias possibilidades de compreensão, eu prefiro a leitura metalinguística, em que a grande questão da trama é a própria literatura. O livro é construído em capítulos com três tipos de estruturas. Na primeira, estão os textos em que o narrador discorre sobre cada uma de suas ex, com as respectivas brochadas, e nos quais também se aventura a garimpar registros de impotência na história, na mitologia, na ciência e em obras literárias. Aqui, brochar aparece como destino fatídico dos homens, uma experiência individual, mas que lança suas consequências sobre a humanidade. No segundo tipo, aborda-se especificamente um pensador ou um período, com as inevitáveis referências às brochadas.

Entre cada dupla de capítulos destes, ocorre uma troca de emails entre o narrador e sua ex. Jacques envia o texto, explica que está escrevendo um livro e pede que ela o comente e conte se alguma vez também brochou com ele. A resposta das ex, quase sempre em tom acusatório, revela o comportamento machista do narrador e expõe sua vulnerabilidade emocional. Nestes emails, o Jacques-autor dá algumas pistas do tipo de experiência que está fazendo:

“Não tenho a menor ideia do que é ser um escritor (nem do que é Literatura). Talvez seja essa insatisfação diária  e essa busca quase sufocante por alguma beleza”.

“(…) é tudo literal (ao menos, assim acredito) e por isso mesmo é tudo simultaneamente verdade e ficção”.

“Não é função da literatura fazer (ou não fazer) confiar no autor, muito menos fazer confirmar na pesquisa histórica ao se trabalhar com a ficção”.

“O leitor, Carla, no entanto, jamais descobrirá a linha tênue que separa a ficção da realidade, e nem saberá se o narrador-brocha é mesmo o próprio autor-impotente”.

Voi-là. No fim das contas, Brochadas não poderia ser mais claro quanto às suas intenções. Que ainda assim restem dúvidas sobre o que é real e o que é inventado; o que é memória e o que é criação; se o autor é o narrador – ou se suas opiniões estão expressas mesmo é nas respostas das ex-namoradas… Tudo isso é também o próprio mistério da literatura  e das infinitas possibilidades de relação dos leitores com os textos literários, desde Dom Quixote. Mais do que em qualquer outra linguagem artística, a escrita é (paradoxalmente) a arte do não-dito. Há vários em Brochadas.

É bom lembrar que o primeiro livro de  Jacques Fux – Antiterapias, pelo qual ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura como estreante – também era uma incursão pela autoficção. Em um tom muito mais sóbrio, embora não desprovido do mesmo humor farsesco, ele já ensaia o estilo que em Brochadas vem mais escrachado. E é interessante notar que Brochadas começa com uma referência direta à sua pesquisa de doutorado, recentemente lançada como o livro Literatura e matemática, já resenhado aqui. Os dois primeiros capítulos são uma lista de motivos para brochadas masculinas e femininas, um exercício (matemático) de esgotamento de possibilidades inspirada no escritor francês George Perec.

E você aí, achando que um livro com esse título só ia render algumas risadas despretensiosas.

PS: A imagem em destaque é da obra sem título do artista ucraniano Edward Krasinski, fotografada no Inhotim em 2016. Composta por espelhos flutuando numa sala, com fitas azuis coladas sobre eles e nas paredes, o ambiente causa uma certa confusão espacial – não se sabe o que é espelho e o que é verso, entre o que é “verdade” e o que é reflexo.

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