A migração forçada é um dos fenômenos mais marcantes dos séculos XX e XXI, não apenas no que ela significa em termos demográficos, mas especialmente quanto aos seus efeitos na vida das pessoas, famílias e comunidades. E se a história recente está cheia de episódios que provocaram a diáspora de povos – guerras mundiais, guerras locais, holocausto, ditaduras, terremotos, fome, desemprego -, esse movimento acaba repercutindo nos mais variados campos da expressão artística, das artes visuais ao cinema.
Na literatura, é onde assume uma dimensão mais intimista e subjetiva: é em geral com base na história pessoal ou de antepassados muito próximos que o escritor se joga num exercício de entender os efeitos desse exílio em sua identidade e na compreensão de seu lugar no mundo. É nesse sentido que segue A imensidão íntima dos Carneiros, romance de estreia de Marcelo Maluf. Publicado pela pequena editora Reformatório, o livro acaba de ganhar o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria dos estreantes com mais de quarenta anos.
Maluf é descendente de libaneses católicos e busca, em seu livro, entender os elementos complexos de uma identidade cultural que chegou a ele já partida, em muitos aspectos. O avô migrou criança para o Brasil fugindo à violência do exército turco; até então, a família vivia uma existência absolutamente rural, baseada na criação de carneiros ao pé de uma montanha. No Brasil, passaram a viver do comércio. A ligação com a natureza se foi, mas ficou uma espécie de chamado a que o escritor responde, evidenciado na forma como nomeia seus capítulos – o vento, a montanha, o fogo, o oceano – e no próprio título do livro.
É o medo, no entanto, o sentimento central dessa busca. O narrador questiona-se: é possível herdá-lo geneticamente, como se herda a cor da pele, a textura da barba, o formato do nariz? Porque ele, nascido em tempos de paz, em outro continente, ainda sente um medo que parece ancestral? Seria o mesmo medo?
Nessa investigação, o livro parte em uma jornada ao passado numa narrativa onírica que coloca o leitor nos pastos do Líbano, junto com seu bisavô, e num sobrado de Santa Bárbara D’Oeste, interior de São Paulo, onde o avô Assad se estabeleceu. O livro é um exercício ficcional a partir das poucas memórias compartilhadas pela família, numa construção complexa e bem peculiar no conjunto da produção brasileira contemporânea.
O narrador principal, também chamado Marcelo, nasceu muito depois da morte de Assad. No livro, no entanto, Marcelo é testemunha ocular dos últimos dias do avô; uma presença fantástica e incógnita que o acompanha enquanto revive suas memórias, colocando em papel os acontecimentos que o fizeram migrar. Assim, A imensidão íntima dos carneiros não é apenas uma autoficção, nem somente um livro de memórias, ou uma biografia familiar, mas uma bela experimentação narrativa.
O trabalho de Marcelo Maluf conversa tematicamente com diversos outros livros nacionais recentes em que o tema da herança do exílio (ou do trauma) estão colocados. A resistência, de Julián Fúks, é em grande parte a tentativa pessoal de compreensão de uma identidade difusa de quem nasceu em um País diferente daquele dos pais, forçados a migrar por causa da ditadura argentina.
O que os cegos estão sonhando, de Noemi Jaffe é outro exemplo. Filha de uma sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz, ela investiga sua relação com um passado que não é o seu, mas que também permeia sua existência na forma de sentimentos controversos – dentre eles, uma tênue culpa por habitar outro tempo e outro espaço, e não ter compartilhado os mesmos sofrimentos pelos quais a mãe passou.
Esta semana, a Folha de S. Paulo publicou matéria sobre o arquiteto polonês Jakub Szczesny, que se prepara para montar uma instalação na Casa do Povo, edifício da comunidade judaica localizado no bairro do Bom Retiro. Seu trabalho será inspirado num varal de roupas lavadas, postas para secar. “É muito difícil atingir essa esfera da banalidade para aqueles que migram para outro lugar. A banalidade serve de véu para esconder existências mais complexas, identidades de pontos distantes”. (Veja a matéria completa aqui).
Para a geração que migra, atingir a banalidade exige um exercício diário de sobrevivência e esquecimentos. Talvez as gerações seguintes às primeiras migrações deste século tenham se dado conta que, sob o cheiro de sabão em pó das roupas lavadas, há memórias enterradas e outras reinventadas. Quantos milhões de embates pessoais como estes não estão sendo produzidos agora, enquanto assistimos à crise migratória contemporânea? O voltar-se ao passado familiar que a literatura vem promovendo pode ser uma resposta, ainda que insconsciente, a esse conturbado agora.
PS: A imagem em destaque é um detalhe da tela “Navio de emigrantes”, de Lasar Segall, fotografada no Museu que leva seu nome na Vila Mariana, em São Paulo.
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