Dizem que a fama e a desgraça de Gilberto Freyre residem exatamente no mesmo ponto. Se os colegas sociólogos muitas vezes questionaram seu método científico (ou falta de), a obra de Freyre garantiu lugar na história pelo talento literário, que transformava observações sociológicas em narrativas absolutamente deliciosas. Apesar de todos os questionamentos que podem ser feitos ao pernambucano quanto ao seu olhar idealizado sobre o papel dos portugueses na festejada miscigenação brasileira, é preciso dar o braço a torcer quanto ao seu talento para contar as histórias do povo.
Assombrações do Recife Velho é um dos melhores exemplos disso. O clássico sobre os causos de fantasmas da capital pernambucana – o melhor livro jamais escrito sobre o Recife, na minha limitada opinião – acaba de ganhar uma versão em quadrinhos, lançada pela Global editora: Algumas assombrações do Recife Velho, com adaptações de André Balaio e Roberto Beltrão. Ambos jornalistas, desde 2000 eles realizam o projeto O Recife Assombrado, que difunde a cultura do terror em um site, em publicações e eventos esporádicos. O destaque absoluto, claro, é para o material ambientado na cidade maurícia.
Por motivos que até hoje não explicados, o recifense é um exímio espalhador de boatos e um fervente adorador de episódios de catarse coletiva. Essas características fazem da Veneza Brasileira um celeiro de lendas urbanas, desde a colonização até os dias de hoje – algo que o advento da internet só acentuou. Pra quem não acredita, sugiro dar um Google em “boato de Tapacurá” e em “perna cabeluda”. Faça isso despretensiosamente. Se a intenção for desejar nos entender, só posso desejar boa sorte.
Gilberto Freyre soube como ninguém captar esse espírito, e ir além. Ele identificou várias marcas da história social pernambucana na forma como os causos de assombração eram contados. Sem soar professoral, ele nos leva a induzir que os demônios ruivos que assolavam as mocinhas de antanho são uma interpretação popular do assédio protagonizado pelos invasores holandeses do século 17. Algumas assombrações do Recife Velho, que seleciona sete desses episódios, conseguiu transpor bem essa intenção.
A narrativa econômica em textos e os excelentes desenhos de Téo Pinheiro trabalham sobretudo os ambientes em que as histórias de assombração surgiram e se imortalizaram. Sete das histórias foram escolhidas para o álbum, começando com O boca de ouro, que trata sobre um fantasma de um malandro negro que assombra um jovem senhorzinho que resolve passear pela noite do Recife depois de beber mais do que deveria. O Teatro Santa Isabel e as ruas escuras do Bairro do Recife são o cenário para essa história que, bem ao modo de Freyre, revela os costumes boêmios da classe média e o medo latente da população negra em vias de emancipação.
Da mesma forma, O lobisomem doutor aponta para o assédio de mulheres negras por donos de terras, transfigurados na lenda quase universal do meio-homem-meio-lobo que surge na lua cheia. Na mesma toada vai o Papa-figo – a história de um homem que, com uma doença estranha, paga um preto velho para sequestrar criancinhas (negras) para que lhes possa comer o fígado. Acreditava que, assim, poderia se curar.
A mais bela das histórias é O visconde encantado, sobre o aviador que pousaria no Recife após atravessar o Atlântico com um bimotor, numa época em que isso era um feito e tanto. No dia marcado para sua chegada, ele não aparece. Nem nos dias seguintes. Mas a partir de então, todas as noites, pessoas da cidade juram ouvir os motores de um avião invisível cortando os céus da cidade.
Sobre os desenhos de Téo Pinheiro, é necessário elogiar o apuro na reprodução de edifícios e lugares icônicos da capital pernambucana, além da escolha da paleta de cores para reproduzir a noite e a escuridão de onde nascem todos os medos.
Algumas assombrações do Recife Velho é uma excelente introdução à obra de Gilberto Freyre. Por isso, sugiro que o leitor não fique só na HQ. A leitura do original é deliciosa, e uma bela maneira de começar a conhecer o intangível pendor do Recifense pra uma história de malassombro.
PS: Assombrações do Recife Velho deu origem a uma peça homônima da trupe Os fofos encenam. Se algum dia você topar com uma remontagem por aí, apenas vá.
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Algumas assombrações do Recife Velho – a HQ
Assombrações do Recife Velho – o original de Gilberto Freyre
Um comentário sobre “Os fantasmas se divertem (no Recife)”