No princípio era o subúrbio, no fim o caos

Os subúrbios do Rio de janeiro foram a primeira coisa a aparecer no mundo, antes mesmo dos vulcões e dos cachalotes, antes de Portugal invadir, antes de o Getúlio Vargas mandar construir casas populares. (…)

As ruas juntaram tanta poeira que o homem não teve escolha a não ser passar a existir para varrê-las.”

O primeiro capítulo de O amor dos homens avulsos, de Victor Heringer, é belo. Um Gênesis cru e poético do subúrbio carioca, que teria aparecido “antes do mundo” à semelhança do clássico carioca, o Fla x Flu, – que, segundo Nelson Rodrigues, nasceu 40 minutos antes do nada.

É nesse subúrbio de pó, calor, desterro e abandono que nasceu Camilo, o protagonista do romance. O bairro de Queím é fictício, mas pode ser qualquer um dos aglomerados humanos que estão do lado de lá das montanhas, onde, como diz Chico Buarque, em sua canção Subúrbio, “… não tem brisa/não tem verde-azuis/não tem frescura nem atrevimento/lá não figura no mapa/no avesso da montanha, é labirinto”.

O livro é narrado em primeira pessoa por um sujeito cinquentão, funcionário público, que em algum momento da vida morou na zona Sul, mas que volta às origens para viver os dias da aposentadoria em um quarto-e-sala no bairro da infância.

A narrativa vai se alternando entre regressos aos anos 1970, da infância e adolescência de Camilo, e o tempo presente, em que nos apresenta as mazelas do cotidiano daquele bairro quente e de seu edifício que vive em ebulição. O inferno.

Camilo, segundo as palavras do próprio, é um aleijado, um deficiente, ou o que o jornalista Jairo Marques, definiria como um malacabado. Uma deficiência nas pernas impede sua mobilidade e o retém em casa, superprotegido pela mãe durante toda a infância.

A partir do segundo capítulo a poesia da introdução dá lugar a uma linguagem direta, sem floreios, repleta do palavreado do subúrbio, sem qualquer sutileza e sem meias palavras. Na verdade, chamar essa linguagem de suburbana pode soar um tanto elitista. Heringer escolheu escrever na linguagem das ruas, dos quartos, das cozinhas, naqueles momentos em que se de deixa de lado a erudição e a conversa é entremeada de palavrões, gírias, códigos de uma tribo urbana ou outra. Essa é uma das qualidades do romance. Nada ali soa artificial. E nem forçado. É simplesmente a vida fluindo no texto.

Camilo, criado no subúrbio, não é exatamente um garoto pobre. Seu pai, em plenos anos 1970, tem um carro, um possante dos mais invejados no bairro. A família mora em um sobrado murado, com piscina, destoando da vizinhança.

Na soma das idas e vindas vamos descobrindo os podres da família. O casamento dos pais que não vai bem. Camilo e a irmã gradativamente abandonados à própria sorte em meio à crise conjugal, os sumiços do pai, o estado de abandono da mãe. A chegada de um menino de origem misteriosa e a raiva e inveja que este desperta no seio da família causam ainda mais confusão. No futuro, Camilo e a irmã terão certeza, e vergonha, da duvidosa atividade do pai naqueles anos sombrios.

Cosmin, o menino que chega como adotivo, mas que tudo indica ser um meio irmão de Camilo, vai sendo aceito. E abre os portões do sobrado, levando Camilo finalmente para o convívio com a turma do bairro.

Nesse percurso, o narrador nos fala de ditadura, da descoberta do perigo, da marginalidade, do crime, da morte e das estratégias de sobrevivência de quem foi para o bairro não para se manter discreto e escondido, como o pai, mas porque não tem outro lugar onde morar.

Também é o tempo da descoberta da afetividade, ou da falta dela. E do tesão. Nas entrelinhas, o leitor vai perceber que Camilo, o adulto, é um homem gay. E que teve na adolescência uma grande paixão, justamente Cosmin.

Não vou me prender ao relato da história, até porque muitos fatos podem virar uma sequência de spoilers. E há muito para descobrir na leitura.

O que salta das páginas do romance é a obra de um autor que tinha uma escrita vigorosa, ousada e um futuro enorme na literatura.

Heringer usa sinais gráficos, interrompe o texto com pequenos desenhos, faz uma narrativa quente, como o subúrbio, sinuosa como o desenho das ruas do bairro, cheia de terrenos baldios para divagações, interrupções da narrativa, quebra da linearidade, entrada dos fluxos de pensamento.

Cabe ao leitor a composição do quebra-cabeças da vida de Camilo e daqueles que estão em seu entorno. No presente e no passado. A soma dos ditos e as inferências que tiramos dos não ditos formam o resultado final de um romance que incomoda.

Nele, o homem gay é deficiente, está sempre acima do peso, não é bonito, não tem o charme da Zona Sul, não vive desfilando seu bronzeado pela Farme de Amoedo. O jovem Camilo é um rapaz branquelo que tem alergia ao sol e, como alerta Victor na epígrafe, que chama de “Informe meteorológico”:

“A temperatura deste romance está sempre acima dos 31oC.

Umidade relativa do ar: jamais abaixo dos 59%.

Ventos: nunca ultrapassam os 6km/h, em nenhuma direção.

O mar está longe deste livro.”

Esse Rio de Janeiro distante do mar, longe do barquinho e do violão é uma soma dos bairros que Victor conheceu quando visitava a avó. E que ficaram em sua memória, embora ele mesmo jamais tenha morado no subúrbio.

Nesse cenário ele também fala de inúmeros tipos de violências. Mortes estúpidas, racismo, violência doméstica, estupro, abuso sexual de crianças e da homofobia, que o jovem Camilo, ainda em busca de sua identidade, sofre na pele.

Mas também é um livro que faz um apelo para o amor. Na construção do romance, Heringer pediu a colaboração de internautas para compor uma das partes mais tocantes do livro. Uma sequência de páginas, que à moda do poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade, vai fazendo elos entre Camilo, que amava Cosmin, que amava Carla, que amava Luís, que amava Antonio e por aí vai. E coloca a ele próprio, Victor, no meio da quadrilha. Todos os casais dessa sequência são verdadeiros, vindos da colaboração de centenas de leitores que atenderam ao pedido do autor.

É também um grito desesperado de uma pessoa que envelhece em meio à mediocridade. E que deseja afeto, mesmo usando meios duvidosos para atrair para si, já em direção à velhice, a presença de uma pessoa.

Para entender o romance é preciso ler com atenção, ligar os pontos, despir preconceitos e eliminar estereótipos que podem provocar bloqueios em quem não esteja aberto a levar na cara uma boa dose de crua realidade.

HeringerFalei do futuro brilhante do romancista, que publicou O amor dos homens avulsos aos 28 anos, com grande recepção da crítica, sucesso de vendas na edição da Companhia das Letras, que li em versão para o Kindle. E que deixou a vida aos 29, em março de 2018, nos privando de seu imenso potencial.

Se no Gênesis particular de Heringer, no antes de tudo havia o subúrbio, o Apocalipse de Camilo e de seu criador são de uma tristeza sem fim.

Viaje ao subúrbio com Heringer. Você vai devorar esse romance, sem querer parar.

 

3 comentários sobre “No princípio era o subúrbio, no fim o caos

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