O romance da sororidade

Estava a ler o romance Com armas sonolentas, de Carola Saavedra, quando me deparei com esta matéria do jornal francês Le Monde, escrita por Claire Gatinois, correspondente em São Paulo, que faz uma uma pergunta desconcertante: onde estão os pais dos jogadores brasileiros? E uma constatação: 7 dos 11 titulares de Tite na Rússia foram criados pelas mães. A maioria, como foi o caso mais debatido, o de Paulinho, por abandono. Retrato de uma situação comum do machismo mundial, que parece se acentuar no Brasil. Homens covardes que abandonam filhos e filhas, deixando para as mulheres – com quem deveriam dividir as responsabilidades – a tarefa de cuidar, alimentar e educar as crianças. Não se trata de uma defesa do conceito tradicional e católico casamento “até que a morte os separe” e da família com uma instituição sagrada e indivisível. Casamentos acabam, separações são parte da vida. Mas responsabilidade sobre vidas que colocamos no mundo não podem e não devem ser negligenciadas.

Essa proporção de 7 para 11 está acima da média da sociedade brasileira. Mas cada um de nós conhece exemplos de abandono ou de relações que são meramente financeiras entre pais ausentes e filhos criados pelas mulheres da família. Eu mesmo fui uma criança criada pela mãe e pela irmã mais velha a partir dos sumiços de meu pai até a definitiva separação e a falta absoluta de visitas, telefonemas, afagos, perguntas, interesse.

E foi com esse quadro na mente que avancei na leitura de um romance em que a figura masculina é periférica, ausente, como esses pais dos jogadores, como centenas de milhares de pais.

Com armas sonolentas é um romance de três vozes femininas. Duas mulheres brasileiras e uma alemã que aparentemente não têm nada entre si. Anna, uma jovem aspirante a atriz e seu passado pobre. Outra, sem nome, que ainda criança é entregue ao trabalho doméstico de uma “casa de família” da alta sociedade carioca, mostrando os mecanismos da Casa Grande, que parecem se perpetuar neste país de uma forma naturalizada. E Maike, uma garota alemã que sente imenso deslocamento em seu país e na casa dos pais, advogados bem sucedidos de Berlim. E que só vai entender quem é ao vir estudar no Brasil.

A grande chave da trama está na figura de uma misteriosa avó, figura que paira entre o real e o fantástico, e que se constitui no ponto de ligação entre as vidas dessas três mulheres. Para fazer essa ligação é preciso que o leitor e a leitora fiquem atentos à polifonia de vozes, que se misturam em capítulos curtos e mudanças de narradoras. São elas que dão as pistas para ligar pontos e chegar ao centro da história. E paro por aqui para não ceder à tentação de fazer spoiler.

A polifonia do romance de Carola Saavedra mostra a habilidade da mudança de tom em cada narrativa. No começo do livro, comentei com Renata que estava achando o texto excessivamente frívolo, um tanto raso. Era quando a primeira personagem que nos é apresentada, Anna, jovem atriz, se joga nos braços de um famoso diretor de cinema alemão, usando a beleza como passaporte para uma chance de se tornar famosa e rica. Foi o avanço da leitura e a percepção de que o texto acompanhava o momento e o jeito de cada uma das personagens que consegui entender e gostar do que lia. E quando acompanhamos uma Anna madura, fazendo um espetáculo solo e autobiográfico no CCBB do Rio de Janeiro, tudo se encaixa e faz sentido.

Com armas sonolentas é, na leitura da crítica, um livro sobre mulheres, afeto, maternidade. E, neste último ponto, não faz um libelo da beleza de ser mãe. Pelo contrário. Há situações em que o desespero leva duas personagens a abandonarem suas filhas. Abandonos por motivos diversos. Mas que sempre vêm carregados da culpa que muitos dos pais dos jogadores brasileiros e a imensa maioria dos homens que rejeitam vínculos com seus filhos jamais têm. São mulheres que têm consciência do que fizeram e tentam encontrar motivos para se perdoar, porque sabem que a sociedade não as perdoa.

O nome do livro vem de um verso de sor Juana Inés de La Cruz, que viveu no México colônia, no século XVII. Religiosa, escritora de poemas e peças de teatro, ficou conhecida como A Fênix da América e teve sua obra marcada pelo desejo de liberdade, em um mundo dominado pelos colonizadores espanhóis e pela religião. Escolheu a vida de freira para poder estudar, o que não seria permitido como leiga. E ainda assim enfrentou a ira dos religiosos por ser mulher e ter a ousadia de escrever.

No romance, trechos dos poemas de Juana e cânticos em Neengathu, a língua geral falada no Brasil colônia –  um dialeto fortemente dominado pelas palavras indígenas – misturam-se  a referências religiosas e citações a clássicos da literatura ocultos nos diálogos, na peça de teatro de Anna e nas aparições da avó.

Mas foi a referência a sor Juana de La Cruz que me deu a indicação do que levarei desta leitura. Com armas sonolentas é um livro sobre afeto, carinho, solidariedade, sexualidade, apoio mútuo, compreensão. Tudo aquilo que podemos definir como sororidade. Uma grande leitura para mulheres, uma lição necessária para homens.

Uma ótima leitura, em edição da Companhia das Letras e essa capa linda de Kiko Farkas e Felipe Sabatini.

Com armas

 

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5 comentários sobre “O romance da sororidade

    1. Amâncio, eu acho que esse movimento vem de alguns anos. Se olhar atentamente para a lista de indicados ao Prêmio São Paulo de Literatura (só para tomar um dos filtros de qualidade como exemplo) verá que temos nos últimos anos excelentes romances, mesmo alguns que poderiam ser considerados de autoficção. Sem contar a ótima produção de contos (incluo seu livro nessa conta) e de poesia. Tem muita coisa boa sendo publicada.

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