Resenhar um livro de contos pode ser bem difícil. Encontrar um linha de pensamento para analisar histórias, lugares e personagens por vezes muito diferentes entre si. Ou, se há ligações internas entre os contos, saber distinguir cada um, para que não trate o conjunto como os capítulos de um romance. Fiquei com sérias dúvidas para falar de Nem tudo cabe na paisagem, livro do pernambucano Amâncio Siqueira, lançado recentemente, em edição caprichada, pela ótima Cepe – Companhia Editora de Pernambuco. A reunião de contos foi uma das cinco obras contempladas pela 5ª edição do Prêmio Pernambucano de Literatura. Dou o crédito logo de cara, porque é preciso reconhecer e incentivar iniciativas como essas. O livro chegou às mãos do Lombada Quadrada por oferta do autor. O que para nós é um reconhecimento do singelo trabalho de resenhas de livros que queremos ler, de que gostamos, sem rigor acadêmico ou compromisso comercial.
Feito o necessário nariz de cera, é do livro que vamos falar. Amâncio é um sertanejo, nascido em Afogados da Ingazeira. Hoje mora em Garanhuns, construída sobre uma serra, onde há frio e umidade. Mas cercada pelo sertão por todos os lados. E o sertão é uma presença constante nos contos. Não um sertão de clichê. Sim, há jagunços, há seca, há fome. Mas também existe um sertão atual, transformado por políticas públicas, alguns anos de desenvolvimento econômico, chegada de faculdades, motocicletas em profusão. Como diz o personagem de Atirei no que vi, acertei no que não vi:
Nosso sertão já não é tão duro, mesmo depois de vários anos de seca. Mudou o humor. Não empurra mais todo mundo pra fora. Parece até que sorri pra quem volta.
Foi a leitura desse conto que me levou à síntese de todo o livro. É um texto poderoso. Um filho leva seu pai de volta à cidade natal. Sabemos que o pai foi vítima de uma fatalidade, entrando em estado terminal. Na estrada, ele vai acertando as contas com um pai, assim como ele, policial, assim como ele, dado a arroubos de valentia. Um pai rígido, duro, com um passado nebuloso, uma história familiar cheia de traições, homens de vida dupla, meio-irmãos espalhados por mais de uma casa, mulheres abandonadas, uma grande chaga do machismo, como já lembrei na resenha do ótimo romance de Carola Saavedra, resenhado aqui.
Essa fala se estende por 39 pequenos capítulos. Ali, toda uma saga, que vai mostrando sutis ligações com alguns dos contos anteriores. Mas essa longa viagem em direção ao sertão-berço tem só uma voz. É um solilóquio do filho. O pai, ausente, calado, não reage às ofensas, não retruca quando o filho lhe dirige acusações. A cada capítulo, uma nova tensão, para, no fim, a aproximação com a cidade natal gerar uma certa suavidade. E, então, o último texto traz um arremate genial, que não posso descrever, porque o spoiler seria dos grandes.
Mas Nem tudo cabe na paisagem faz outras viagens. Uma delas, pela literatura. O personagem do último conto afirma que “A vida tem dessas coisas: nem tudo cabe no recorte de um romance”, o que parece também um sinal de Amâncio para a escolha do gênero conto.
A literatura está presente com força em Absinto, o conto que abre o livro. Um pequeno grupo de jovens, um deles mais velho, chamado Socó Pombo e o narrador sedentos de livros, debates, conhecimento. Eis que Socó convence a turma de que era preciso criar um movimento. E surge o “Manifesto do Movimento Lixista”, começando uma aventura literária e etílica, um daqueles desvarios da juventude, fadados a um quase esquecimento, mas que ficam guardados no canto da memória, como parte da formação de cada um daqueles moleques.
A figura do justiceiro do sertão aparece na impressionante narrativa do conto Bastardo. Em outro conto, uma breve e ácida história de uma audiência judicial em torno de uma tentativa de assassinato fala de violência, perdão, esquecimento. E de burocracia.
A beleza do amor de um jovem soldado do exército por uma biblioteca, o escândalo de uma não traição, onde se descobre que o tesão, o prazer e o gozo de um casal livre e sem amarras podem incomodar mais do que uma saída às escondidas. Enquanto em outro conto um pastor sai pelas cidades sertanejas pregando até que alicia uma garota, prometendo casamento, levando-a para casa. E lhe apresentando um dilema. Um conto de suspense, que deixa no ar a possibilidade de um crime. Outro fim arrebatador, o que parece ser aliás uma das qualidades de Amâncio Siqueira. Pois o conto, essa narrativa curta e traiçoeira, exige do autor a qualidade de saber terminar a história e deixar um monte de minhocas na cabeça do leitor.
Por fim, preciso destacar um conto que trata do ofício da escrita. Em Línguas de fogo conhecemos Alessando Caldas, um autor que bebe uísque no quarto onde tem seus livros e sua escrivaninha. Logo de cara, ele nos diz que “é comum ao escritor sofrer uma crise puerperal após a conclusão de uma obra”. E se a obra não for lida, nem mesmo pelos amigos? É isso que acontece com Alessandro, um “profissional do anonimato”, um escritor sem leitor. Com seu cigarro e seu uísque aproxima-se de um desfecho. Mais um encerramento surpreendente, com ares de fantástico e de assombro.
Embora com pegadas absolutamente distintas, não posso deixar de concluir que vi uma ligação entre Nem tudo cabe na paisagem, de Amâncio Siqueira e Quebranto, de André Balaio. Ambos pernambucanos, que publicaram em 2018 excelentes livros de contos que abordam, cada um a seu jeito, o universo do fantástico, do absurdo, do mistério, dos finais que são surpreendentes, muitas vezes uma porrada no estômago. Vida longa ao conto fantástico.
P.S.: na foto, o caminho do sertão, na incrível viagem que eu e Renata fizemos pelo interior de Pernambuco, Bahia, Alagoas e Sergipe, em 2016. Uma das mais lindas viagens da minha vida <3.
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Grato pela leitura atenta, Carlos. Espero ter deixado muitas minhocas na sua cabeça.
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Amâncio, parabéns pelo livro. Deixou sim. Como toda obra de arte, seus contos são um ponto de partida para pensamentos, divagações, conexões com outras obras. Valeu muito ter lido.
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fantastigocitose da realidade
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