Dentro do nevoeiro, de Guilherme Wisnik, é mais um dos livros da série “compramos pela capa”, que já se tornou um clássico dos autores do Lombada Quadrada, como se vê, por exemplo, neste post. Em uma tarde de verão, depois de um almoço regado a cerveja e cachaça, com alta dose de imprudência, entramos na Livraria da Vila da Fradique Coutinho, (mais ou menos) cônscios dos riscos que corríamos. Saímos com alguns títulos na sacola, precisando de mais espaço na já lotada biblioteca de casa e com alguns significativos reais a mais na conta do cartão e, portanto, a menos na contabilidade do mês. Mas valeu a pena.
O nome do autor também foi decisivo para a escolha. Guilherme Wisnik é arquiteto, professor da FAU/USP e um pensador sobre arte, arquitetura, tecnologia e urbanismo, com um olhar humanista que tem chamado minha atenção em artigos publicados em jornais e revistas. Dentro do nevoeiro foi uma de minhas leituras de carnaval, entre uma caminhada pelo centro histórico de Tiradentes, uma espreguiçada na rede da pousada, bons pratos de comida mineira, cafés, blocos animados e, claro, cerveja, cachaça e vinho.
O ensaio é resultante da tese de doutorado de Wisnik na USP. Mas isso não quer dizer que o leitor vai encontrar um livro hermético, repleto de jargões acadêmicos e infestado pelas odiosas normas ABNT. Certamente, está nesse formato aqui, no banco de teses da USP. Mas a edição em livro, feita com esmero pela editora Ubu, com financiamento da Fapesp, tem uma pegada envolvente. A começar pelo excelente projeto gráfico de Elaine Ramos, que coloca o texto nas páginas ímpares e todas as referências iconográficas e bibliográficas à esquerda. Uma proposta ousada, que dialoga com o ensaio, além de criar “manchas” gráficas incríveis, como na foto. E porque Wisnik escreve com fluidez, com um texto que te convida à leitura e à reflexão.
E aí você já leu três parágrafos e, se aguentou chegar até aqui, está me perguntando: afinal, em algum momento você vai comentar o livro?
Tá certo. Vamos a ele.
Wisnik faz um amplo panorama sobre arquitetura, tecnologia e arte, ligando o começo do século XX à contemporaneidade. Do modernismo, passando pelo pós-moderno, até chegar aos dias em que vivemos imersos em uma grande bruma, um opacidade, uma nuvem que paira sobre os nossos dias, como ele define aqui:
“Claramente, o verdadeiro hiperespaço agora é a nuvem, o espaço global da comunicação ininterrupta, ambiente profundamente imersivo e sem recuos perceptivos, e todo mediado por dispositivos tecnológicos de uso cotidiano que se infiltraram em cada segundo de nossa vida, 24 horas por dia, 7 dias por semana. Dentro dessa imensa nuvem o céu é sempre branco acinzentado, e não mais azul ou preto, e o tempo não pendula mais entre os momentos de luz e os de sombra, ou as horas de trabalho e as de ócio, lazer e repouso. Dentro do nevoeiro contemporâneo estamos expostos permanentemente, como numa vigília, a uma luz intensa e difusa, ao clarão de uma ‘névoa cerrada’. Aqui, toda a variação climática que pode ocorrer não é de intensidades de luz, mas de ventos e de raios, provocando mais ou menos turbulências.”
Esse parágrafo, que está em destaque na quarta capa, pode induzir à ideia de que estamos diante de uma tese distópica e, portanto, pessimista. É claro que a dura realidade contemporânea, o crescimento da extrema direita e as manifestações de ódio à cultura e aos direitos humanos estão aí para nos açoitar diariamente. Mas talvez elas sejam uma reação desesperada de quem vê o mundo em transformação. E tem um pouco desse olhar no ensaio.
Partindo de uma análise do modernismo como a era da transparência, em que, na arquitetura, por exemplo, o vidro permite que os prédios tenham seu interior devassado, no mesmo momento em que as obras de arte começam se reproduzir em escala, Wisnik passa pelo momento de transição e incertezas do pós-modernismo até o ponto de inflexão, o atentado contra as torres gêmeas, enxergando na grande fumaça que tomou conta de Manhattan o símbolo da era da opacidade, o começo de fato do século XXI.
Nesse percurso, o leitor vai passar com fascínio pelas referências à Escola de Frankfurt, Bauhaus, Mondrian e muito mais. Verá uma crítica aos deslumbramento do holandês Ren Koolhas e de outros arquitetos pelo modelo da pele que oculta os grandes empreendimentos e os aparta da vida urbana (se você pensou em shoppings e grandes centros comerciais e condomínios, acertou) até chegar ao artista Olafur Eliasson como um dos tradutores dessa era em que vivemos em meio a brumas, necessitados de aguçar o olhar para enxergar além do nevoeiro. Nessa análise, entra também em cena a tecnologia, a nuvem de dados e seu apetite voraz por energia, espaços para os grandes data centers e o mapeamento dos hábitos de cada um de nós como lógica de um capitalismo que precisa a cada segundo criar novas vontades e desejos.
Dentro do nevoeiro é um livro político. Uma tese de doutorado que tem um lado, um posicionamento firme e um olhar com embasamento científico, mas prenhe de um humanismo do qual estamos necessitados. É uma daquelas leituras em que você vai anotando autores, pesquisando a obra de artistas e buscando dados sobre tecnologia.
Como diz Giorgio Agamben, em uma das citações do livro, “contemporâneo é quem mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro”. Esse parece ser o papel dos intelectuais. Sejamos contemporâneos.
P.S.: a foto em destaque é de instalação do artista Olafur Eliasson, muito citado no ensaio. A obra esteve em exposição em 2012 no Sesc Pompeia e convidada os visitantes a mergulhar em um espaço amplo, totalmente tomado por uma densa névoa, com uma luz intensa no fundo. Tateávamos, às cegas, até chegar a uma parede. E voltávamos em direção à escuridão total. Cegueira branca em um sentido, cegueira escura em outro e a total perda de referência. Muito a ver com o livro.
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