As folhas secas de Ricardo Terto

O craque Didi, bicampeão mundial pela seleção brasileira, brilhou nos gramados defendendo o time da estrela solitária e ganhou de Nelson Rodrigues o apelido de “Príncipe Etíope”, dada sua elegância e altivez em campo. Foi dele também a criação, ou pelo menos a popularização, do chute “folha seca”, em que a bola viaja reta, deixando a plateia em suspensão e com a certeza de que o tiro vai pra fora, até que um efeito monumental faz a pelota cair abruptamente, balançando as redes. São breves momentos de expectativa e silêncio até o desfecho poderoso e o grito da torcida. Imitado por grandes craques, como Juninho Pernambucano e Cristiano Ronaldo, o chute pode ser visto neste vídeo. Mas aí você se pergunta. O que o tal chute tem a ver com literatura?

E vem a resposta. A arte da narrativa breve, tão elogiada por Enrique Vila-Matas e Ítalo Calvino, exige histórias que se encerram em poucas páginas e desfechos poderosos. Um conto precisa dessas qualidades para cativar o leitor. E é isso que o paulista Ricardo Terto faz em Os dias antes de nenhum, publicado neste ano pela Editora Patuá. São 13 contos, muitos deles com no máximo 4 ou 5 páginas, que apresentam uma unidade narrativa muito bem construída, embora tratem de assuntos tão diversos como pornografia, passeios turísticos, pintura de paredes, pena de morte, trabalho, um dia na praia, entre outros temas. Em comum, um universo que flutua entre o distópico e o fantástico. E, como marca do autor, a capacidade de combinar ritmo e velocidade com desfechos abruptos e surpreendentes, tal qual a folha seca de Didi.

Desde Pornô, conto de abertura, até o último, e que dá o nome ao livro, situações aparentemente corriqueiras são narradas também de forma natural. Jogos de palavras, alternância de ritmos, frases curtas, em alguns momentos, quase versos de um poema que invade a prosa, provocam no leitor uma sensação de estar dando normalidade ao absurdo, como se ecoando o que vem acontecendo em um país que parece estar disposto a naturalizar a barbárie. E é sobre isso que Terto escreve na última página do livro, dizendo que os contos foram “escritos entre 2016 e 2019. Nesse período muitas coisas aconteceram no Brasil, inclusive algumas serviram de assunto para esta obra”.

É importante ressaltar que as narrativas de Os dias antes de nenhum não são justificativas para o absurdo. Antes, são um conjunto de denúncias de um autor que afirma que “sem me transpor em sentimentalismo, continuo achando desafeto uma palavra impossível.” E talvez seja no incrível conto Das vantagens econômicas do apedrejamento que a possibilidade de resistência em meio à barbárie esteja mais presente. Em um futuro não muito longínquo, o Brasil vive sob uma teocracia. A pena de morte foi instituída e atinge não apenas os homicidas. São fuzilados todos aqueles que contestam o poder estabelecido. Quando se pensa na tentativa de autorizar o vale tudo nas GLOs contra manifestantes e Sem Terra, não nos parece que essa ideia seja tão irreal, muito pelo contrário. A distopia nos cerca. Mas o absurdo no conto vai além. Um grupo de economistas postula o apedrejamento como forma mais eficaz e econômica de cumprir as sentenças de morte, alegando que o custo com munições é alto. E eis que nos deparamos com um grupo de condenados que está diante de um pelotão de apedrejadores, pessoas comuns, convocadas pelo Estado para cumprir seu dever cívico. Um elemento perturbador é colocado em cena e a cerimônia sai de seu script. Não vou fazer spoiler, porque o fim é incrível e a narrativa tem um ritmo alucinante. Vale muito a leitura.

Da família que abandona o sítio para deixar o patriarca morrer sozinho, ao sujeito que é pago para fazer “degustação de peidos de vacas”, do salva-vidas que detesta salvar vidas ao pintor de paredes que vê todo seu trabalho ser coberto por uma misteriosa cor amarela, ou do capitão de um navio de turismo que se vê à deriva, os contos vão se encaixando, construindo um desfecho em que a unidade narrativa entre histórias tão díspares se faz presente com a “participação especial” de algumas das personagens nas últimas histórias. É preciso estar atento para essas aparições, que demonstram a arquitetura bem estruturada do livro, mostrando que o autor não entregou para edição um amontoado de narrativas sem nexo. E convergiu as narrativas para um conto final que parece mostrar que, enfim, a humanidade é um projeto equivocado, malgrado as tentativas de dar algum sentido à existência.

O livro, com belíssima capa e a edição caprichada que é marca da Patuá, chegou ao Lombada Quadrada pela indicação certeira do editor Eduardo Lacerda. Em uma tarde de lançamento no Patuscada, o incrível bar da editora no bairro de Pinheiros, Lacerda nos mostrou Os dias antes de nenhum e vaticinou: “será uma das melhores leituras de vocês em 2019”. E acertou!

Os dias antes de nenhum

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