Na pequena cidade de Campo Bom, no interior gaúcho, a menina Nanda e o amigo Alexandre rivalizavam nas manobras radicais com a bicicleta. Tal qual Senna e Prost, ídolos da velocidade daqueles anos 1980, mas sem a inimizade e a sacanagem que marcavam as disputas entre o francês e o brasileiro. Mais do que isso. Compartilhavam a mesma bike. Juntos, Nanda e Alê construíram a duras penas uma pista de bicicross, moldada para suas aventuras sobre duas rodas. E eis que no dia da inauguração, diante de toda a molecada, na curva final, quando a menina parecia estar a poucos metros de superar o amigo na velocidade e nas acrobacias, vieram a ruptura e a queda. E foi assim que começou a radical mudança na vida de Maria Fernanda, a protagonista de Controle, romance de Natalia Borges Polesso, publicado em 2019 pela Companhia das Letras.
Logo nas primeiras páginas do livro, ficamos sabendo que a epilepsia se manifestou pela primeira vez na vida de Nanda ali, na pré-adolescência, naquela curva final, provocando convulsão, queda, fraturas e uma longa permanência no hospital. A partir desse evento, a vida de Nanda virou do avesso. Cercada de cuidados excessivos pelos pais, estigmatizada na escola, alvo dos olhares tortos e do medo de colegas e professores, sempre na iminência de um ataque, a menina aventureira e expansiva deu lugar a uma adolescente calada e reclusa.
Esse é o fio da história e um possível resumo do romance. Mas a autora vai muito além. Em uma narrativa guiada pelas citações das canções da banda New Order e a cultura pop do final anos 1980 e começo dos 90, acompanhamos a vida de uma pessoa que viu a frágil democracia brasileira ressurgir, a liberação sexual ser refreada pela presença aterradora da Aids e deu os primeiros passos no uso da internet e dos canais de comunicação online, como o ICQ. Nanda representa uma fatia da baixa classe média cujos pais de alguma forma prosperaram e deram a seus filhos mimos e proteção extra que as gerações anteriores não tiveram. Proteção agravada pelos temores de que a qualquer momento a química cerebral da jovem poderia redundar em mais crises, convulsões e pânico.
Controle é também o romance da solidão. Nanda perde as amizades e se afasta do convívio social, ao mesmo tempo em que começa a viver as transformações da puberdade. O corpo que se altera, o sobrepeso que vem com a falta de atividades físicas, os efeitos dos remédios e tratamentos paliativos para tentar deter as crises, as tentativas desesperadas de entender os circuitos elétricos que comandam o cérebro e tentar identificar o momento em que a convulsão chegará, provocando o descontrole e a perda dos sentidos tornam-se o centro de uma vida cada vez mais reclusa e silenciosa.
Nesse percurso, a navegação solitária na internet, os grupos temáticos de epilepsia e um conturbado namoro virtual marcam a aproximação da vida adulta. Sempre cercada dos cuidados dos pais, arrumando empregos medíocres e abandonando os estudos, Nanda vê sua vida se consumir na incessante tentativa de se manter em pé. Nessa busca, uma amizade da infância é retomada. E, com ela, a descoberta de novos desejos. É quando a homoafetividade aparece, criando mais um curto circuito na vida de Maria Fernanda. É nessa descoberta que a vida parece ganhar sentido.
Natalia Polesso constroi a trama a partir de uma narrativa fragmentada, pontuada pelas letras das canções e por idas e vindas temporais muito bem urdidas. Na sequência final, uma viagem e a primeira aventura de Nanda longe da proteção dos pais e das zonas de conforto do Rio Grande do Sul natal traz uma miríade de descobertas. É a segunda grande ruptura em sua vida. É também quando a protagonista percebe que poderia (e ainda pode) fazer escolhas diferentes daquelas que a doença pareciam lhe impingir. O desfecho tem um ritmo alucinante, pontuado por frases curtas, que tiram o fôlego do leitor. E abre novas e incríveis possibilidades para a vida de Fernanda, como se ela pudesse voltar à pista de bicicross para completar seu circuito e ganhar aplausos e admiração da turma, refazendo suas escolhas e trajetos, antes que a vida se vá.
Foi minha primeira leitura de Natalia Polesso, que tem se destacado na produção literária recente. Vou atrás de outras obras, especialmente do elogiado e premiado romance Amora, vencedor do Jabuti de 2016. A conferir!
P.S.: a imagem em destaque é da obra “Desvio para o vermelho”, de Cildo Meireles, que fotografei no Inhotim.
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