Para entender Dom Quixote

Don Quijote 2

Este livro me acompanhou por 459 dias e uma mudança de emprego; foi meu companheiro de incontáveis almoços no Morumbi, na Vila Olímpia e no Pacaembu – e que companheiro. Tirá-lo do meu cotidiano foi dolorido até, uma sensação que ainda não consegui superar de todo. Fato é, Dom Quixote é mais do que um livro e uma história bem contada. É uma experiência sensacional, uma viagem incomparável ao gênio e ao engenho humano.
Esta foi a minha segunda incursão à obra prima de Cervantes. Fiz uma primeira tentativa em 2015 por meio de uma edição gratuita baixada pelo Kindle. E querem um conselho? Não façam o mesmo. Por mais bem intencionadas que sejam as pessoas que digitaram (ou copiaram) o livro inteiro para oferecê-lo de graça, os erros e problemas de formatação são tantos que a leitura acaba bem prejudicada. Eu já tinha uma edição impressa, mas ela era enorme e pesada demais para ficar carregando por aí. Até que resolvi deixar o livro na minha mesa do trabalho para tê-lo à mão na hora de almoçar. Deu certo.

A edição em questão foi lançada pela Real Academia Española em 2005, comemorando o quarto centenário da obra. É um volume maravilhoso, com prefácios e posfácios que fazem a contextualização histórica e linguística do texto, além de milhares e milhares de notas explicativas. Comecei tudo de novo (já estava na metade da edição do Kindle). E fez toda a diferença para a qualidade da minha viagem por La Mancha.

Dom Quixote é monumental e simples, melancólico, cativante e incrivelmente engraçado. É inacreditável como um livro escrito há mais de 400 anos continua fazendo rir com tanto frescor, um das provas da genialidade de Cervantes. Como de praxe quando escrevo sobre clássicos da literatura, não vejo muito sentido em postar uma resenha tradicional. Então vou explorar algumas curiosidades e fatos interessantes sobre o livro e que, espero, pode estimular você a lê-lo:

Cervantes odiava novelas de cavalaria

Por incrível que pareça, foi esse motivo extremamente ranheta que levou Miguel de Cervantes a escrever Dom Quixote. Ele achava que as histórias de cavalaria, então bastante populares na Espanha do começo do século 17, eram prejudiciais à sociedade. Segundo seu julgamento, eram histórias disparatadas e fantasiosas que afastavam as pessoas da boa literatura e prestavam um desserviço à educação, pois muita gente seria incapaz de diferenciar a ficção dos livros sérios. Cervantes não estava isolado nessa opinião, compartilhada por vários outros autores importantes que o antecederam.

Mas como nada diminuía o interesse do povo por estas novelas, Cervantes resolveu atacá-las por meio da paródia: assim surgiu o romance sobre o fidalgo de La Mancha que enlouquece de tanto ler histórias de cavalarias, até ele próprio se achar um cavaleiro e sair pela Espanha em busca de aventuras. Deu tão certo, e Dom Quixote fez tanto sucesso na época, que de fato a circulação das novelas de cavalaria reduziu consideravelmente no país. Era muito mais divertido ler sobre as estripulias do Cavaleiro da Triste Figura do que as velhas e batidas histórias de cavaleiros.

Uma senhora empreitada gráfica

A primeira edição da primeira parte de Dom Quixote tinha 664 páginas, divididas em 83 cadernos de oito páginas cada um. Foi composto e impresso no prazo inacreditavelmente curto de dois meses. A prensa de Gutenberg havia sido inventada 150 anos antes e popularizara o livro. Porém, o processo de composição continuava sendo manual, com as páginas sendo montadas letra a letra, transpostas a partir do original escrito à mão.

Não era pouca coisa e continua não sendo: dois meses é um prazo ínfimo para a edição de um livro até com toda a tecnologia digital disponível hoje. Cervantes, porém, era vizinho da gráfica e imagino a pressão que deve ter feito para ver sua volumosa obra impressa em tempo recorde. A primeira tiragem de Dom Quixote teve entre 1.500 e 1.600 exemplares – um número bem alto também para padrões de hoje. Cervantes tinha certeza de que seu livro faria sucesso, mas não imaginava o quanto.

Don Quijote 5

Dom Quixote e a pirataria

A primeira parte do livro vendeu tanto que acabou sendo alvo de pirataria, o que forçou Cervantes a escrever e lançar a segunda parte do romance quase 10 anos depois da publicação original. Ou seja, Dom Quixote não era apenas um best seller imediato, mas um com potencial de mercado o suficiente para que outra pessoa ousasse escrever uma continuação e colocá-la a venda na praça. Furioso, Cervantes tinha pouco a fazer para barrar a pirataria além de escrever ele mesmo a segunda parte de sua história, pensando que a diferença de qualidade falaria por si e enterraria a circulação da edição pirateada. A essa altura, o Dom Quixote original já circulava por boa parte da Europa e seu autor tinha uma invejável fama em vida. Então toca escrever e imprimir outro volume imenso em tempo recorde – com uma história ainda mais incrível que a primeira.

Metalinguagem

Cervantes já tinha ensaiado o uso da metalinguagem na primeira parte de Dom Quixote: enquanto percorrem a biblioteca cavalheiresca do fidalgo louco, o padre e o barbeiro da cidade encontram na estante o livro La Galatea, de um tal Miguel de Cervantes.

– “Muitos anos há que é grande amigo meu esse Cervantes, e sei que é mais versado em desditas do que em versos. Seu livro tem algo de boa invenção: propõe algo, e não conclui nada; é preciso esperar a segunda parte que prometeu: quiçá com a emenda alcançará a misericórdia que agora lhe é negada (…)”, diz o padre.

Na segunda parte, a brincadeira fica ainda melhor: Dom Quixote e Sancho Pança encontram pelo caminho várias pessoas que leram tanto a primeira parte do romance quanto a continuação pirateada. Percebem, então, que são famosos em todo o país, e aqui e ali precisam contestar as histórias contadas no livro falso. Melhor ainda: a dupla começa a encontrar pelo caminho quem deseja entrar na história, como um casal de duques que envolve todos os seus serviçais na criação de aventuras mirabolantes para manter os dois ocupados nas estripulias mais absurdas.

Ao mesmo tempo em que Cervantes tinha a pretensão de mudar a realidade com seu livro, acabando com as novelas de cavalaria, cria personagens que querem a todo custo ser imortalizados na ficção. Além disso, a premissa de Quixote é de que o livro seria uma tradução para o Espanhol da narrativa histórica escrita pelo árabe Cide Hamete Beneguele. Há um sofisticado jogo de ficção que retroalimenta uma ficção que pretende se passar por verdade. E nunca é demais lembrar: tudo isso há mais de 400 anos.

O triunfo da linguagem popular

Uma vez que tinha objetivo de compor uma sátira, Cervantes emula a linguagem usada pelos livros de cavalaria quando Dom Quixote está em seu “modo cavaleiro”, desafiando rivais e se dirigindo à aristocracia. Quando está a sós com Sancho Pança, seu tom muda completamente: ainda é um fidalgo erudito, mas de fala sensata e mais objetiva. Todas as pessoas comuns da história usam uma linguagem marcadamente popular, onde abundam palavrões, pronúncias erradas, uso de termos com sentido diferente do original, por desconhecimento. Sancho Pança, por sua vez, é uma metralhadora de ditados populares, que usa sempre que pode. E é uma delícia perceber quantos dos que usamos comumente hoje, em português, estão aí há vários séculos: “quem canta seus males espanta”, “à noite todos os gatos são pardos”, “sei onde me aperta o sapato”, entre dezenas ou centenas de outros. Esse jogo entre várias formas diferentes de se expressar, que denotam também diferenças sociais, é uma das coisas mais deliciosas do livro, que o explora também na narrativa: Dom Quixote frequentemente corrige Sancho, e isso é mote para várias tiradas engraçadas na relação entre os dois.

Muito louco pensar que o primeiro dicionário da língua espanhola foi lançado entre as duas partes de Dom Quixote e já usou a obra de Cervantes como base para o registro de inúmeros vocábulos.

Além disso, o escritor estava bastante consciente do que fazia ao usar a linguagem popular nos seus trabalhos, como explica o próprio Dom Quixote a Sancho (como o trecho é longo, vou deixar no original pra não ofender ninguém com uma tradução porca):

“Ten cuenta, Sancho, de no mascar a dos carrillos ni de erutar delante de nadie.
– Eso de erutar no entiendo – dijo Sancho.
Y Don Quijote le dijo:
– Erutar, Sancho, quiere decir ‘regoldar’, y éste es uno de los más torpes voablos que tiene la langua castellana, aunque es muy significativo; y así, la gente curiosa se ha acogido al latín, y as regoldar dice erutar, y a los regüeldos, erutaciones, y el uso los irá introduciendo con el tiempo, que con facilidad se entiendan; e eso es enriquecer la lengua, sobre quien tiene poder el vulgo e el uso.

Cervantes era um gênio – e sabia disso.

Todo o texto de Dom Quixote é pontuado de sinais de que Cervantes sabia muito bem o que estava fazendo: uma obra-prima que seria lembrada por muitos séculos. A princípio, parece apenas um recurso narrativo, pois Dom Quixote busca aventuras justamente para que suas façanhas sejam conhecidas, registradas por algum historiador e assim se tornem imortais. Até Sancho, que embarca nas aventuras pela promessa de melhores condições de vida, acaba por falar também na imortalização dos feitos de seu cavaleiro. A reiteração desse argumento, principalmente na segunda parte, quando o sucesso do livro era um dado objetivo, é prova de que Cervantes tinha certeza da perenidade de sua obra. Vejam por exemplo, essa tirada do narrador/”tradutor”:

“Real e verdaderamente, todos los que gustan de semajantes historias como ésta debem de mostrarse agradecidos a Cide Hamete, su autor primero, por la curiosidad que tuvo en contarnos las semínimas de ella, sin dejar cosa, por menuda que fuese, que no la sacase a luz distintamente. Pinta los pensamientos, descubre las imaginaciones, responde a las tácitas, aclara las dudas, resuelve los argumentos: finalmente, los átomos del más curioso deseo manifiesta. ¡Oh autor celebérrimo! ¡Oh don Quijote dichoso! ¡Oh Dulcinea famosa! ¡Oh Sancho Panza gracioso! Todos juntos y cada uno de por sí viváis siglos infinitos, para gusto y general pasatiempo de los vivientes.

Bonus track

Há vários poemas e canções ao longo de Dom Quixote, alguns maravilhosos. Escolhi dois para destacar abaixo.

No prólogo do primeiro livro, há um soneto-diálogo entre Rocinante, o cavalo esquálido de Dom Quixote, e Babieca, o cavalo de guerra do herói nacional espanhol El Cid:

Diálogo entre Babieca y Rocinante

B.¿Cómo estáis, Rocinante, tan delgado?
R. Porque nunca se come, y se trabaja.
B. Pues ¿qué es de la cebada y de la paja?
R. No me deja mi amo ni un bocado.

B.Andá, señor, que estáis muy mal criado,
pues vuestra lengua de asno al amo ultraja.
R. Asno se es de la cuna a la mortaja. ¿Quereislo ver? Miradlo enamorado.

B.¿Es necedad amar?
R. No es gran prudencia.
B. Metafísico estáis.
R. Es que no como.
B. Quejaos del escudero.
R. No es bastante.

¿Cómo me he de quejar en mi dolencia,
si el amo y escudero o mayordomo
son tan rocines como Rocinante?

Don Quijote 3

No meio da primeira parte, Cervantes apresenta um poema em formato muito conhecido dos leitores brasileiros, pois usado por Gregório de Matos em um dos seus poemas mais famosos. Diz o rodapé que a forma estrófica, chamada “ovillejo”, pode ter sido inventada pelo próprio Cervantes:

Don Quijote

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