Você marca os seus livros?

Eu lembro exatamente como começou. Tinha guardado na gaveta um lápis de duas pontas comprado na Pinacoteca. Era um lápis marca-texto, dizia a embalagem: de um lado, amarelo, do outro laranja. Ia começar a ler 2666, de Roberto Bolaño, e resolvi que daquela vez usaria o laranja em vez do grafite sem graça que eu adotava há anos para marcar meus livros.

Sendo 2666 um calhamaço de 852 páginas, a metade laranja do lápis acabou muito antes do livro. Então veio o clique: porque não comprar uma caixa de lápis de cor e ir explorar as possibilidades? O seguinte foi Dom Quixote, numa edição da Real Academia Espanhola para o qual escolhi um tom de verde claro para combinar com um detalhe da capa. Quatro anos e duas caixas de lápis de cor depois, parece que consolidei mesmo essa frescurinha como um novo hábito.

E não estou sozinha nessa. Outro dia, uma menina sentou do meu lado no metrô e baixou a máscara pra falar: “nossa, achei que só eu fazia isso!”. Claro que eu estava com um livro no colo, lápis de cor e régua na mão. Na hora, não puxei assunto (se por causa da máscara abaixada ou porque queria ler em paz, deixo pra imaginação de vocês), mas achei interessante.

E no domingo passado, lendo em um café perto de casa com lápis verde-água em punho, a memória deu um pulinho no passado ainda mais remoto, quando uma Renata quase adolescente achava um pecado deixar qualquer marca em um livro. Eu dependia tanto de livros de bibliotecas e sebos que acabei internalizando a ideia de que queimaria no inferno se grifasse uma passagem que fosse – mesmo que o livro fosse meu e eu não planejasse passá-lo adiante.

Mas a gente envelhece, perde umas frescuras, ganha outras, e com certeza fica mais prático. Chegou um ponto, especialmente quando comecei a ler em maior volume (60-70 livros por ano) que fazer marcações e tomar notas se tornou inevitável pra ajudar nas releituras ou a encontrar referências posteriores. Também fui lendo mais sobre bibliofilia e a história dos livros, inclusive fiz um curso de conservação até entender que o objeto se faz nessa relação material com o leitor. Quem sou eu na fila no pão, mas imagina a biblioteca de um grande escritor, de uma grande escritora, com as marcações e anotações à margem feitos de próprio punho? Ouro que chama?

Sei lá que destino minha biblioteca vai tomar quando eu não estiver mais por aqui, mas sei que deixarei pelo mundo umas centenas de livros marcados com linhas coloridas meticulosamente feitas com o auxílio de uma régua flexível. Dentro de alguns volumes, vão encontrar também folhas avulsas dobradas com anotações minúsculas feitas à grafite, num garrancho praticamente ilegível. Por vezes, esses papéis também serão coloridos e trarão observações sobre cada conto, poema ou as páginas com algo interessante a se notar.

Don Quijote, edição de 400 anos da Real Academia Espanhola.
Grande Sertão: Veredas. Edição mais recente da Companhia das Letras.

Não faço isso em todos os livros, pra dizer a verdade. Ano passado, com o mestrado e a quantidade indizível de bibliografia pra dar conta na entrada em uma área do conhecimento na qual eu não tinha nenhuma formação anterior (Museologia), adotei sem dó a caneta marca-texto amarela, daquela mais ordinária que se vende na papelaria da esquina. É o que tenho feito no caso de livros técnicos de trabalho, sobre comunicação, marketing ou publicidade. Para esses, vale mais a rapidez – ainda que as linhas tortas me deem um pouco nos nervos.

Desde o começo da popularização da internet, lá pelo meio dos anos 1990, se fala no fim do papel. Estamos em 2022 e me vi comprando um tablet para dar conta da leitura de artigos e textos acadêmicos em PDF. Posso marcá-los com uma caneta eletrônica que uso para emular um marca-texto de qualquer cor, ou uma tinteiro, com a qual faço anotações à mão nas margens do documento. Posso tocar na tela com o dorso da mão e o dispositivo sabe que esse é só um gesto de apoio, que não deixa marcas. Não é papel, mas funciona como se fosse – e eu acho isso sensacional em muitos níveis.

Nem sempre foi assim – as primeiras canetas eletrônicas eram horríveis, mas a indústria percebeu que muita gente tem apego à escrita à mão, ainda que usando um tablet pra isso. Falo por mim: quando anoto à mão, memorizo muito melhor do que quando faço notas digitadas. E toca investir alguns milhares de horas em desenvolvimento de hardwares e softwares pra fazer uma tela eletrônica parecer uma singela folha.

Muitos anos atrás, numa das edições do finado Festival da Mantiqueira, ouvi um poeta dizer que o livro é a invenção perfeita. Concordo totalmente. Estamos aqui, séculos depois da invenção do códice, chegando à conclusão de que as mais tecnológicas traquitanas precisam emular um livro para ter alguma utilidade.

Se você ficou até aqui, obrigada. Acho que esse é o post mais sem assunto já publicado nesse blog. ❤

5 comentários sobre “Você marca os seus livros?

  1. Ah, não é post sem assunto não! Acho interessante refletir sobre nossa relação com o objeto livro e nossas táticas pra tentar reter na memória algo que lemos. Pessoalmente, já marquei, deixei de marcar, voltei a marcar… Mas respeito uma interdição, que eu mesma me imponho (nem sei por quê): nunca, nunquinha mesmo, marcar algo com caneta. Lápis e até marca-texto, sim; caneta, não. Que sentido faz isso?!

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  2. Amei esse post! Eu também uso lápis de cor nos livros, só que tenho um código de cores que estabeleci com o tempo: palavras chaves de uma cor, aquelas frases ouro de outra… Gosto tanto ❤️

    Tenho pensado em comprar um tablet também para os mesmos fins, mas ainda não me decidi sobre qual e de qual marca…

    Curtido por 1 pessoa

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