Já faz algum tempo que resenhamos periodicamente livros contemporâneos de terror escritos por autores nordestinos, gênero que não é exatamente uma novidade na região. Ainda em 1955, Gilberto Freyre havia publicado Assombrações do Recife Velho, apresentando aos leitores uma coleção de causos recolhidos entre as crendices e histórias populares, colocando em papel aquilo que já circulava e se reinventava solto nas ruas da capital Pernambucana.
A produção contemporânea, é claro, vai em outro caminho, mais inventivo, e que bebe, também, das inevitáveis influências da cultura popular globalizada (sobretudo do cinema), sem que isso signifique o abandono do que é eminentemente local. Bem pelo contrário. Os livros de terror que vêm sendo escritos no Nordeste brasileiro não se distinguem apenas pelo fato de a região ser o local de nascimento dos autores e autoras, mas pela uso decisivo da história e do cotidiano nordestino na construção das histórias.
Em Gótico Nordestino (Alfaguara), o paraibano Cristhiano Aguiar já deixa isso claro desde o título e da capa, que estampa o detalhe de uma xilogravura de Gilvan Samico intitulada A luta dos anjos, em que dois seres mitológico-religiosos aparecem como que em mundos invertidos – um de pé sobre um leão, o outro sobre um bode; um trajando uma túnica azul, o outro de peito nu; um com uma espada, o outro armado de lança; um de cara limpa, o outro com uma máscara vermelha que lhe dá expressão entre farsesca e agressiva. Mais do que a luta do bem contra o mal, a obra de Samico parece apontar para a dualidade do ser humano, o bem e o mal que há, inevitavelmente, em cada um.
Se esta é uma das chaves para os nove contos do livro, a outra está na epígrafe, escolhida do quadrinho O monstro do pântano, de Alan Moore, autor também de V de Vingança e Watchmen: “Muitas coisas no mundo… andam estranhas“. E quem somos nós pra discordar, entrando no terceiro ano de pandemia de coronavírus.
A dualidade prenunciada por Samico aparece já no primeiro conto. Em Anda-luz, um menino é tirado da cama de madrugada para entregar uma mensagem a um cangaceiro estacionado na região. O menino é capaz de parar no caminho para fazer companhia a um vagalume em vias de morrer e ainda resgata um filhote de gato antes de chegar ao coito – a antítese da imagem de morte própria do cangaceiro. Mas o menino inocente tem lá suas astúcias, e não sai do encontro sem antes surrupiar uma faquinha brilhante. Como será comum em vários dos contos, o final da história é apenas prenunciado de leve por algum detalhe com pouca explicação. O menino nada faz com a faca, apenas a leva consigo. Mas o fato de que a tem na mão abre um portal para imensas possibilidades narrativas que existirão apenas na cabeça do leitor.
Em As onças e em Lázaro, realidades se transformam por epidemias inexplicáveis. No primeiro, os habitantes de uma cidade começam a se transformar em onças famintas, impondo novos hábitos aos humanos que ainda restam, caçados a qualquer saída de casa; no segundo, à pandemia de coronavírus se segue outra, a de pessoas que ressucitam depois de dadas como mortas, com corpos deformados e pouca autonomia, criando um fardo social do qual todos os vivos preferem se afastar, bastando a inconveniência do velório cancelado.
Em Firestarter, Cristhiano bandeia pra ficção científica e alude a um futuro não muito distante em que a internet 7G permite que grupos de malucos percorram o país atrás de incêndios – a fissura é observar a destruição do fogo. Nas lembranças do personagem narrador sobre o seu primeiro incêndio, há uma elegia às avessas do objeto livro:
A cada novo incêndio que encontramos, recordo emocionado do primeiro. (…) Foram uns livros, transformados em fogueira no terreno baldio da rua onde passei minha infância, em Recife. Não faço ideia do motivo de queimarem, mas aprendi o que é um livro. É um troço meio pesado, bruto, feito de eixos verticais e horizontais. Um livro é um dinossauro que o meteoro esqueceu de exterminar. A gente abre um livro e encontra um mistério dentro, a cascata de linhas-frases. Mas tem a decepção: “Só isso?”, a gente pergunta pro livro, porque ao redor dele se formam umas promessas, mas daí quando a gente abre… Um livro em chamas é uma concha se fechando. E, de tanto se fechar, a concha se anula largando uma pérola de cinzas, que graças a Deus é varrida pelo vento. Tudo vira espírito. Se espalha pelo ar – tosse, tosse.
Do meio pra frente os contos vão ficando mais introspectivos e densos. Em A mulher dos pés molhados há um interessante embate entre pai e filha que se reencontram quando ela anuncia a gravidez e ele quer alertá-la sobre uma maldição que paira sobre todos da família. “A maldição é uma metáfora, painho, da ideia de herança”. Sendo um conto de terror, no entanto, ela logo descobrirá, nos restos de um navio naufragado despontando nas areias da praia, que o pai não estava de todo errado.
Anna é um dos meus contos preferidos, menos pelo que ele tem de sobrenatural, e bem mais pela descrição do personagem de um médico que parece estar inscrito em um concurso de autenticidade: mora em um antigo apartamento no Recife Antigo, mantém pisos de taco, escuta discos de vinil, e toda a receita da nostalgia por um tempo mítico quando tudo era melhor. O relato feito pela esposa, exausta de tanta autenticidade, é hilário.
O último conto talvez é o que mais expresse a ideia evocada pelo título Gótico Nordestino. Numa cidade do interior, um vampiro é uma presença mais palpável pelo sobre ele falam os habitantes e sobre os adolescentes que têm medo de serem convocados como seus serviçais. Mais do que a história de vampiro em si, o conto vale pela belíssima forma como a avó da personagem principal lê para os netos, reinterpretando personagens de contos de fadas dentro do contexto nordestino – como o faz o próprio Cristhiano Aguiar. É com um trecho desse conto que termino a resenha:
– O Bem vai vencer o Mal no fim, não é Vovó?
Nunca vou esquecer a reação dela: riu.
– Isso é dentro da vida e da morte. O Mal não vai embora nunca. E às vezes ele até visita. Outras vezes, é a gente que tem que bater na porta.