Uma das melhores notícias desse complexo ano de 2022 é o lançamento de uma nova edição de Estrelas de couro – a estética do cangaço, do historiador Frederico Pernambucano de Mello. Não sei porque milagre, anos atrás consegui comprar um exemplar da terceira edição da Escrituras, de 2015, mas logo depois o livro saiu de catálogo e passou a ser encontrado apenas em sebos custando um rim, coisa rara para uma obra tão recente. A nova edição sai pela CEPE Editora – é bom que se ressalte, a casa editorial oficial do Governo de Pernambuco – por ridículos R$ 120,00. Eu tu corria pra comprar agora mesmo.
Estrelas de couro é um livro exuberante sobre a indumentária, os objetos e os acessórios dos cangaceiros, grupos de foras-da-lei que dominaram o sertão nordestino até o final dos anos 1930, por meio de uma estratégia que misturava terror e conluio com autoridades policiais e políticas. O maior expoente desse movimento foi, é claro, o casal Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, e sua companheira Maria Bonita. Lampião entendia como poucos sobre como a imagem era importante para o sucesso do seu bando, e a projetava por meio da ostenteção deliberada no vestir, que tinha também outras funções: entre elas a de defesa. Daí a profusão de símbolos místicos espalhados nos bordados, na gravação dos metais e nos adereços de couro que ornavam a parafernália dos cangaceiros.
Sobre tudo isso fala Frederico Pernambucano de Mello ao longo do livro, cerca de 300 páginas ilustradas lindamente por fotografias e desenhos esquemáticos dos adereços preservados desde a morte do bando de Lampião em 1938. Grande parte dos objetos fazem parte da coleção do próprio autor; alguns outros pertencem a colecionadores particulares ou a acervos de museus e institutos históricos e geográficos. Conta o próprio Frederico na introdução do livro que sua coleção foi exposta pela primeira vez na megaexposição Mostra do Redescobrimento: Brasil+500, realizada no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, no anos 2000. Para a mostra, ele se debruçou sobre os objetos que vinha acumulando em seu já antigo trabalho de pesquisa sobre o cangaço e pela primeira vez fez uma análise sobre eles do ponto de vista estético. As coisas falam, conclui.
E o que elas dizem está esmiuçado em sete capítulos que tratam das raízes da insurgência brasileira (o historiador matiza a pecha de “bandidos” comumente atribuída aos cangaceiros), e depois se debruça sobre algumas das tipologias dos objetos, com destaque para os chapéus e os demais artefatos de couro (cintos, cartucheiras, correias, alpercatas), os punhais e espadas, e os maravilhosos bornais bordados à mão, em geral em motivos florais, onde cada um carregava a vida inteira nas andanças pela caatinga.
O livro traz também dezenas de fotografias do bando nas passagens por cidades sertanejas, ou em “ação”, fotografados e filmados por Benjamim Abraão nos poucos minutos de imagens em movimento que existem de Lampião. Vários dos objetos preservados por Frederico e em outras coleções podem ser vistos nessas imagens – inclusive na mais infame delas, que exibe as cabeças dos cangaceiros alinhadas na escadaria da Prefeitura de Piranhas (Alagoas) logo após a emboscada que deu fim ao bando. Nesta foto, note-se também as máquinas de costura que o bando carregava, usadas para a produção de seu próprio vestuário. Pra quem não sabe, a mesma mão que sangrava os inimigos com golpes certeiros de punhal também se esmerava no fabrico de adereços não apenas funcionais, mas esteticamente únicos.
“Não há como negar o fato de que o cangaceiro não era um bandido comum. Sem entrar em detalhes que identificariam os “tipos de Cangaço” dentro do Cangaço, o cangaceiro era um guerreiro extraviado no tempo, com sentimentos de honra e lealdaade fora dos padrões normais, às vezes somente compreendidos no seio do seu próprio grupo. Como já afirmei em outra oportunidade, creio sim que somente quem estuda o fenômeno do Cangaço com espírito sectário pode se extremar na admiração sem reservas ou na condição total dos cangaceiros, vendo-os ora como reivindicadores sociais, por um lado, ora como simples bandidos, no sentido estritamente jurídico do termo, por outro”.
(Do prefácio de Ariano Suassuna)
Além de erudita, a análise de Frederico Pernambucano de Mello tem também a grande potência de uma escrita sem igual na literatura histórica brasileira. Ele escreve com sotaque, por assim dizer, pra felicidade dessa conterrânea que vos tecla, o que não é segredo para quem acompanha o Lombada há mais tempo. Já resenhamos outros livros do mesmo autor, como Benjamim Abraão: entre anjos e cangaceiros e Apagando o Lampião.
A reedição da CEPE Editora apresenta o mesmo texto, com uma ligeira atualização na introdução, mas uma reformulação completa na apresentação das imagens – pra melhor, considero eu. O volume anterior da Escrituras recortou as imagens dos objetos sobre fundo preto, de forma que eles parecem flutuar no espaço. Agora, eles aparecem sobre fundo branco, sendo possível perceber melhor o volume por meio das sombras. Há também o rearranjo das imagens em alguns casos, com destaque para artefatos distintos daqueles ressaltados nas edições anteriores. A capa também é diferente, com a opção de explodir o detalhe de uma estrela de couro do chapéu que Lampião usava quando morreu.
Enfim, um livro obrigatório para quem quer entender o cangaço, conhecer melhor a história do Nordeste ou simplesmente aprecia coisas bonitas.
Interessante o Suassuna destacar o cangaceiro como “um guerreiro extraviado no tempo”. Ecoa Euclides da Cunha, que, ao descrever as vestimentas do vaqueiro sertanejo na época do massacre de Canudos, destaca um certo deslocamento temporal: “Envolto no gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta; apertado no colete também de couro; calçando as perneiras, de couro curtido ainda, muito justas, cosidas às pernas e subindo até as virilhas, articuladas em joelheiras de sola; e resguardados os pés e as mãos pelas luvas e guarda-pés de pele de veado — é como a forma grosseira de um campeador medieval desgarrado em nosso tempo”. A tese de Euclides da Cunha (bem questionável aliás) é a de que o sertanejo seria um elemento anacrônico no país, “desgarrado de nosso tempo”. Muito boa a sua resenha, vou procurar o livro, pois parece ser um belo estudo.
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Excelente observação, Thiago, obrigada pela leitura e por compartilhar. 🙂
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