O poeta sem plumas

A leitura de João Cabral de Melo Neto: uma biografia, de Ivan Marques, fez uma vítima. Renata. Isso porque a cada 5 minutos, ou menos, eu a interrompia no que estivesse fazendo para comentar alguma passagem da rica e tumultuada vida do poeta pernambucano. E olha que eu poderia afirmar, antes de mergulhar nas mais de 500 páginas do livro, que já conhecia um bocado de coisas sobre João Cabral.

Explico. Em 1997 fui assistente de edição do documentário Duas águas, produzido pela TV Cultura e dirigido por Cristina Fonseca, que abordava uma parte considerável da biografia do poeta, especialmente focado no período em que ele esteve à frente de missões diplomáticas em Sevilha e Barcelona e também na ligação entre as águas do Capibaribe, que corta o Estado de Pernambuco e deságua no centro do Recife, em meio às muitas ilhas e um enorme estuário – que na mitologia pernambucana forma o Oceano Atlântico – e do Guadalquivir, rio que passa pelas cidades de Córdoba e Sevilha.

O documentário explora essas conexões com os poemas que têm o Capibaribe como personagem, como O cão sem plumas e Aquele rio e as citações de Cabral ao rio espanhol, presença marcante na geografia de Sevilha, em cujas margens ele e sua família fixaram residência durante grande parte da permanência na representação diplomática brasileira na cidade. No documentário, quem dá voz aos poemas é Arnaldo Antunes, um luxo impactante. Na época da produção Cabral ainda estava vivo, embora já com a deficiência visual que o acometeu e o atormentou nos últimos anos de vida. A entrevista dada a Cristina Fonseca é uma de suas últimas aparições públicas.

Para editar o documentário li muita poesia e também referências biográficas sobre o poeta. Mas não havia, na época, material tão amplo, preciso e bem estruturado como a biografia que Ivan Marques construiu a partir de pesquisas e entrevistas, como deve ser conduzida uma boa obra que deseja entregar aos leitores informações e traços de personalidade que fazem de uma pessoa famosa objeto de interesse e curiosidade.

A estrutura praticamente linear dos capítulos traça uma linha do tempo na vida de João Cabral de Melo Neto, nascido no Recife nos anos 1920. Começa a narrativa com sua primeira viagem ao Rio de Janeiro, já nos anos 40, para então falar da infância, da família e dos primeiros passos dados pelo menino entre os engenhos, a casa senhorial do avô na beira do Capibaribe, na então longínqua região em que hoje está o Parque da Jaqueira, e as propriedades no centro da cidade, onde passou a morar quando foi matriculado no Colégio Marista do Recife.

Aluno um tanto preguiçoso, indisciplinado e nada afeito às aulas de religião, Cabral queria mesmo era ser jogador de futebol. E quase o foi, atuando nas categorias de base do América. A pequena compleição física e uma contusão o levaram para o caminho da leitura. A família, em decadência, tinha uma teia de relacionamentos com a nobiliarquia pernambucana, especialmente aquela oriunda do cultivo da cana. Primos ilustres, próximos ou distantes, povoavam as casas da família e seriam importantes para os anos de formação do futuro poeta.

Marques relata a entrada do jovem Cabral no mundo da poesia, suas inseguranças, a aversão ao estudo formal, que fará com que jamais conclua o ensino superior. E a entrada, não sem uma alta dose de bons relacionamentos familiares, na carreira diplomática.

A partir daí, a biografia mostra em paralelo as carreiras de poeta e diplomata, ambas extremamente tumultuadas, entrecortadas por grandes crises e, acima de tudo, atormentadas pela dor de cabeça que acompanhará João Cabral até praticamente o fim de sua vida.

Enquanto relata o processo de construção dos livros, Ivan Marques mostra as agruras de João Cabral na vida diplomática. Avesso à burocracia, atormenta-se com cargos nos quais precisa despachar documentos, atender cidadãos brasileiros e cumprir compromissos diplomáticos. Na verdade, o que JCMN gostava mesmo nessa carreira era do contato com escritores, artistas e a cultura das cidades por onde passava. Do encantamento com a dança flamenca (e, quem sabe, envolvimento com algumas bailarinas?), aos encontros com jovens artistas catalães perseguidos pelo regime franquista, que viam no diplomata brasileiro um porto seguro para discussões sobre arte, política e estética.

Nas idas e vindas da diplomacia, ele estava também mergulhado na tarefa de compor sua poesia, trabalho que lhe causava sofrimento e dúvidas, Cabral também enfrentava outro grande problema, com as finanças. Dado a gastos abusivos, carros de luxo e, quem diria, exibir uma pinta de playboy com passeios em carros conversíveis, de preferência bem acompanhado, ele gastava mais do que ganhava pelo seu trabalho e ainda via a família crescer, aumentando as despesas.

Uma passagem curiosa, que não revelo aqui na íntegra, mostra como a dor de cabeça e as constantes visitas a médicos o levaram a se dedicar a um hobby que também foi marcante em sua vida. As artes gráficas. Comprou uma impressora e passou a editar livros que eram disputados a tapa por bibliófilos. Isso também o levou a se envolver com a incrível experiência pernambucana de O gráfico amador, que teve o artista e designer gráfico Aloisio Magalhães como um dos editores de joias do design de livros no Brasil.

Um momento delicado em sua vida aconteceu ao ser chamado de volta ao Brasil e colocado na geladeira, perseguido pela ditadura que o acusava de comunista. Não que ele não flertasse com o partido, mas a adesão de João Cabral à ideologia e a Moscou parecia ser mais um entusiasmo e um mea culpa do seu passado de menino de engenho do que uma real militância. O fato é que isso fez mais estragos nas finanças e na carreira, que custou a ser retomada.

Nas narrativas paralelas, os livros vão sendo publicados, dividindo a crítica, ora com elogios e no mais das vezes com muita incompreensão. Críticas que o feriam profundamente. Depois de alguns sucessos, finalmente estourou o auto-de-natal Morte e vida Severina, encenado pelo TUCA, grupo de teatro da PUC-SP, com música do jovem Chico Buarque. Por um tempo, João Cabral viajou com o grupo e, por onde passava, era recebido como celebridade. Mas não se engane. Ele nunca gostou de Morte e Vida, achava uma obra menor em sua carreira.

São muitas as facetas de JCMN presentes na biografia e não vou fazer com vocês o mesmo que fiz com Renata, dando detalhes de cada passagem. Recomendo, pois, a leitura dessa biografia que retrata e coloca no seu devido lugar um dos maiores poetas de toda a língua portuguesa. Transtornado, mau humorado, mas ao mesmo tempo capaz de grandes bebedeiras e alegrias com amigos e amigas, próximo e distante de Carlos Drummond de Andrade, seu maior antípoda, amigo da boa bebida, da arte e construtor racional de uma obra única.

Na edição da Todavia, senti falta de mais iconografia. São poucas as fotos e capas de livros, obras gráficas e outras referências visuais da vida de João Cabral de Melo Neto. Mas é um livro obrigatório para conhecer e continuar reverenciando o poeta. Não qualquer poeta.

7 comentários sobre “O poeta sem plumas

  1. Gosto muito desse autor. Incríveis suas poesias.
    Tenho “Poesia Completa Serial e antes A educação pela pedra e depois”. Fiz TCC sobre a mulher na visão de Cabral sobre o poema Imitação da água

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