Livros da Fuvest: Marília de Dirceu

No fim do ano passado, eu achei que seria uma boa ideia fazer uma série de posts sobre os livros selecionados para o vestibular da Fuvest. “Pode trazer uma audiência nova para o blog”, pensei. “Vai me desafiar a ler coisas que eu jamais leria”, pensei também.

As duas coisas são verdade. E sobre a segunda, preciso começar confessando que jamais leria Marília de Dirceu por livre e espontânea vontade. No milênio passado, quando eu fui uma jovem vestibulanda, dei a sorte de ter uma excelente professora de literatura no terceiro ano – mas nem ela conseguiu transformar as liras de Tomás Antônio Gonzaga em algo minimamente atraente.

De forma que, se você vai prestar vestibular pra USP no fim deste ano, meus pêsames. O livro é chato para um cacete.

Marília de Dirceu foi publicado pela primeira vez em Lisboa, em 1792. E antes me acusem de preconceito com coisa antiga, deixa eu dizer logo que alguns dos meus livros preferidos foram produzidos muito antes disso: Otelo, de Shakespeare (1603), Dom Quixote, de Cervantes (1605) e A epopeia de Gilgámesh (+/- 2000 a.C.).

Sem ir muito longe, mais de 100 anos antes de Tomás Antônio Gonzaga, tava lá Gregório de Matos na Bahia produzindo uma poesia muito mais interessante (sobre isso, vejam o post sobre A musa praguejadora, de Ana Miranda).

Sim, sei que reclamar não adianta lá muita coisa – mas eu vou reclamar mesmo assim. Em um país em que apenas 16% da população consome livros – e estamos falando de 1 a 5 POR ANO, segundo pesquisa recente da CBL – um vestibular tão importante como o da Fuvest poderia ter um papel importantíssimo no estímulo à leitura.

Afinal, não estamos falando da tabela periódica ou da fórmula de Báskara que, por mais insuportáveis, são insubstituíveis para as funções que desempenham. A lista de livros é uma escolha. E fazer um adolescente ter que ler Marília de Dirceu justamente no ano em que precisa atulhar a cabeça de conhecimentos nada intuitivos me parece, no mínimo, uma puta sacanagem oportunidade perdida.

Pronto, parei. Vamos à resenha:

Dizem que Marília de Dirceu é importante por simbolizar a transição para uma literatura autenticamente produzida no Brasil – ainda que Tomás Antônio Gonzaga tenha nascido em Portugal e o livro tenha sido publicado pela primeira vez em Lisboa, em 1792. De toda forma, sua inspiração vem do período em que morou em Ouro Preto, justamente os anos da Inconfidência Mineira – o movimento separatista contra a coroa portuguesa que terminou com a decapitação de Tiradentes.

Quando tinha 40 anos, Tomás Antônio Gonzaga se apaixonou por uma adolescente de 16, Maria Doroteia Joaquina, a quem passa a tratar como musa inspiradora. Algumas fontes dizem que eles chegaram a ser noivos. Fato é, Gonzaga acabou preso sob acusação de envolvimento com a Inconfidência e degredado para Moçambique, o que os separou para sempre.

Marília de Dirceu, publicado quando ele já nem podia mais pisar no Brasil, é um conjunto de mais de 60 poemas em que Gonzaga declara todo o seu amor a Maria Doroteia, usando os pseudônimos do título. O livro é dividido em duas partes: na primeira, otimista, o poeta pinta um quadro em que Dirceu e Marília vivem um amor bucólico, longe dos problemas mundanos, e cercados apenas de carneirinhos saltitantes (os carneirinhos eu inventei agora, mas a ideia é essa).

É uma estética associada ao arcadismo, escola literária que valorizava a simplicidade rural idealizada e as referências à antiguidade clássica, daí a profusão de citações a deuses e deusas greco-romanos, dentre os quais, disparado, o Cupido. Marília, obviamente, é a mulher mais bonita do universo conhecido e desconhecido, e Dirceu o cara mais honrado, digno, inteligente e merecedor desse amor – o que gente chamaria hoje de esquerdo-macho abraçador de árvores.

Gonzaga era ouvidor-geral em Ouro Preto, mas o personagem Dirceu é um pastor. Engraçado pensar nessa escolha numa época em que a cidade se notabilizava como centro político e administrativo da mineração de ouro e diamantes, e em que todo o trabalho braçal era realizado por pessoas negras escravizadas.

Na segunda parte, Dirceu está preso injustamente e escreve para Marília desde a cadeia, o que alude à prisão do próprio Gonzaga por envolvimento na Inconfidência Mineira – o que ele sempre negou. Nestes versos, a relação com Marília continua idealizada e ele está doído de saudade, mas agora também de medo da morte. Dirceu reclama da injustiça e teme nunca mais ver sua amada. Este conjunto é infinitamente mais interessante do que a primeira parte, mas não o suficiente para salvar o livro.

Marília de Dirceu tem ainda uma terceira parte, que foi acrescentada depois das primeiras publicações, com poemas em outros formatos, incluindo sonetos, e assuntos variados.

Diferente de poemas épicos como Os Lusíadas, de Camões, Marília de Dirceu tem liras que se relacionam tematicamente, mas não contam uma história. Lemos apenas o ponto de vista de Dirceu, sendo Marília um objeto distante e mudo. É difícil se envolver com os versos e, sinceramente, ao terminar cada lira, você nem lembra direito como ela começou.

É interessante também pensar como Marília de Dirceu se tornou uma obra importante para o contexto brasileiro. Por um lado, uma das ideias centrais do arcadismo era se afastar das odes ao heroísmo e valorizar a vida simples, como as dos homens do campo; por outro, ironicamente, o livro fez fama muito em função do martírio de seu autor, imortalizado como herói de um movimento separatista fracassado do qual ele negava ter participado – é o “mito romântico brasileiro” do inconfidente preso às vésperas do casamento, como pontua Adma Muhana na introdução da edição da Penguin.

Esse ponto do mito romântico e heroico é tão relevante que Maria Doroteia está enterrada junto com insurgentes mineiros no Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, pra onde foram transferidos os restos mortais supostamente pertencentes a Tomás Antônio Gonzaga, operação realizada para que “Marília” e “Dirceu” ficassem juntos para sempre.

Hoje se questiona muito a real relevância da Inconfidência Mineira à luz de outros movimentos de insurgência contra a coroa portuguesa ocorridos Brasil afora, mas é fato que este foi o levante usado historicamente para construir a narrativa do Brasil como nação independente – tanto é que o Dia de Tiradentes é feriado nacional.

Outro ponto relevante – e neste caso, objetivo – é que Marília de Dirceu foi o primeiro livro oficialmente impresso no Brasil após o fim do decreto real que proibia a colônia de ter imprensa ativa. Uma cópia fac-símile desta primeira edição faz parte da exposição principal do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo.

Se você é vestibulando e chegou até aqui, o melhor que posso fazer é aconselhar que preste bastante atenção às aulas de literatura. A leitura do livro é difícil (porque chata) e não vai te ajudar, por si, a tirar conclusões sobre o contexto histórico e as escolas literárias.

Dito isso, boa sorte. A próxima leitura da Fuvest é Quincas Borba, de Machado de Assis, que promete muito mais diversão. : )

3 comentários sobre “Livros da Fuvest: Marília de Dirceu

  1. Olá, Renata! Por conta de uma dessas coincidências que o acaso nos prepara, acabo de ler o post em que você faz uma resenha do livro “Marília de Dirceu” e, com muita coragem, apresenta um ponto de vista bem ao contrário da maioria. Não se trata de um simples gostar, pois sua opinião é respaldada por um olhar crítico de quem tem larga vivência com a literatura de boa qualidade. Se há divergências, acho seu ponto de vista muito respeitável. Talvez eu fizesse uma comparação entre este livro com Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, nas inúmeras páginas dedicadas a Marília. Bem, por falar em visão diferente, informo que está saindo pela editora InVerso o meu livro “Tudo é ausência – eternamente Marília”, que desmistifica a personagem clássica e constrói uma outra, plena de autonomia e independência, que influencia Gonzaga e deixa legados importantes. É esta Marília travestida de Dorothea, nome verdadeiro da musa do poeta, que é protagonista de uma história contada como romance histórico, humanizada e forte, capaz de sobreviver às tragédias da precoce orfandade e da perda do amor a um mês do casamento. Não sei se haveria tempo útil para os vestibulandos da Fuvest lerem esta obra, mas que seja colocada como sugestão de leitura como fruição de literatura histórica de boa qualidade.

    Abraços cordiais, Cornelio Zampier Teixeira

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