Nada mais britânico do que um filme que tenha Anthony Hopkins e Emma Thompson no elenco. E, na ficha técnica, a direção de James Ivory. Nada mais britânico do que um filme que tenha como personagens um mordomo, uma governanta e lordes às pencas. Também é bem britânico rodar o filme em uma bela propriedade no campo, em meio a paisagens idílicas e longas digressões sobre os tempos áureos do império. Nada mais britânico do que um filme baseado em um romance que fala de tudo isso. E nada mais britânico de que o autor desse romance se chamar Kazuo Ishiguro.
Não, pera. Tem algo errado aí? Explico.
Assisti a Vestígios do dia, o filme, no ano de sua estreia, 1993. Saí do cinema impressionado com as atuações seguras e comoventes de Hopkins e Thompson, ambos já consagrados naquela época. A direção segura de James Ivory e a história extremamente britânica fizeram desse um filme marcante. Nada para constar entre os melhores de todos os tempos. Mas é um belo exemplar de uma ótima narrativa. Só não reparei, ou pelo menos não me lembro de ter reparado, que o filme era baseado no romance de um tal de Kazuo Ishiguro. E olha que sou leitor atento de créditos.
E eis que 24 anos depois me deparo com Vestígios do dia na lista de lançamentos da Companhia das Letras. Além de remeter ao filme, a segunda edição brasileira do romance vem com o carimbo “Prêmio Nobel de Literatura 2017”. Então, deu vontade de ler, para entender os motivos que levaram a academia a premiar esse escritor que, confesso, ignorava. Certamente, não dei atenção alguma aos livros dele que por aqui chegaram até o Nobel.
A primeira descoberta é que o romance altamente britânico saiu da lavra de um autêntico cidadão britânico. Nascido em 1954, em Nagasaki, aos cinco anos de idade Ishiguro mudou-se com a família para a Inglaterra, onde de fato recebeu sua formação. Com oito livros publicados, prêmios, milhões de exemplares vendidos e adaptações para o cinema.
A leitura de Vestígios do dia foi rápida e intensa. Revelou uma combinação rara. Livro bom, filme bom, já que a equação mais corrente, como já resenhamos aqui, é de filme ruim, livro bom, filme péssimo para livro ótimo, com honrosas exceções. E Ishiguro está nesta última e escassa lista.
A grande qualidade do romance é o manejo da linguagem. Hopkins, quer dizer, Stevens, é o mordomo de uma conceituada mansão britânica, tipo assim uma Downton Abbey, mas que nesse caso se chama Darlington Hall. Ele já se aproxima do seu ocaso, mas ainda comanda a casa com grande pompa e muita circunstância, embora já tenha se dado conta de que os dias de glória não voltarão. Tudo porque a mansão já não mais pertence a Lord Darlington. Para estranhamento, ou quase horror, de Stevens, o novo proprietário e patrão é Mr. Farraday, um milionário norte-americano dado a contar piadas e fazer gracejos com o empertigado mordomo, criado na mais autêntica old school dos mordomos na nobreza britânica do começo do século XX.
A história começa já no pós Segunda Guerra. Mr. Farraday vai passar uma temporada na terra natal. E sugere a Stevens que pegue o luxuoso Ford da mansão e saia de férias por alguns dias. A sugestão provoca calafrios no mordomo, que tenta, educadamente, recusar. Mas o patrão insiste e lhe dá alguns dias para pensar. E é o que Stevens faz. Pensa, pensa, pensa e pensa. Para não dar o braço a torcer, procura um motivo nobre para empreender a viagem. Lembra-se de uma antiga colega, que foi governanta nos tempos áureos, Miss Kenton, na verdade, agora, Mrs. Benn, que há mais de 15 anos deixou seu posto para se casar. Havia recebido dela uma carta, na qual leu nas entrelinhas o desejo de voltar e uma possível crise no casamento. Então, diz ao patrão que irá, sim, mas em missão de trabalho, em busca da possibilidade de trazer de volta uma governanta para uma casa que teve mais de 20 serviçais e que naquele momento conta com apenas quatro pessoas. Boa desculpa, Stevens!
E aí começa a aventura de Stevens, que durante seis longos dias cruza a Cornualha com o Ford do patrão. Não sem antes mandar fazer uma roupa à altura da viagem que empreenderá. Um mordomo jamais deve perder a classe e a compostura.
Comentei que o grande trunfo do livro está no manejo da linguagem. A história é narrada em primeira pessoa. Na verdade, é como se Stevens estivesse escrevendo para cada leitor, tratado em primeira pessoa, um diário de sua jornada. A habilidade de Ishiguro é escrever tudo isso em um tom extremamente formal e burocrático, que é o que se espera de um mordomo tradicional, conservador, cumpridor de seus deveres.
E aí vocês me dirão: escrita formal e burocrática? Esse livro deve ser um porre.
Mas não é.
Desde os preparativos até o começo a viagem, Stevens diz a que veio. Vai entremear o presente com reminiscências do passado. Vai nos contar o que acha que deve ser a “dignidade” de um mordomo, dará receitas precisas de como um bom profissional deve se comportar, fará um relato detalhado dos debates que opunham velhas e novas gerações de mordomos no entre guerras, duelando em meio a dilemas sobre a limpeza das pratarias, a aceitação de convidados não oriundos da nobreza e outros tantos assuntos que ocupavam o cérebro dos mordomos de antanho.
De vez em quando, já na estrada, Stevens falará de seu atual patrão e dos costumes liberais que tanto o incomodam. Vai relatar episódios acontecidos na jornada, minuciosamente planejada após a leitura de um guia de viagens publicado por uma senhora da nobreza quase 40 anos antes de ele partir para a aventura. Cada uma dessas pequenas passagens dará o mote para uma história do passado. Nesses momentos, o relato da viagem é interrompido e começam as digressões. E é nessas histórias que vamos compondo o quadro que nos dá a dimensão de quem foi Lord Darlington, seu antigo e saudoso patrão.
Como praticamente todo nobre daqueles tempos, entre uma caçada a raposas e uma partida de críquete, em meio a jantares para 40 pessoas ou um chá para um visitante, Lord Darlington, imbuído de sentimentos humanistas, não se conforma com o tratamento dado aos alemães, derrotados na Primeira Grande Guerra. Ele vê como horror as imposições e restrições feitas no Tratado de Versailles por Inglaterra, Estados Unidos e, sobretudo, a França. Em sua visão, os aliados não tratam a nação vencida com dignidade e cavalheirismo.
Stevens vai se lembrando de cada um dos “grandes encontros internacionais de pessoas notáveis” promovido pelo patrão em Darlington Hall. Emociona-se com as situações em que tudo correu perfeitamente bem no serviço aos convidados. E vai nos contando sobre a presença crescente de alemães e britânicos simpatizantes de um novo líder que surge por aquelas bandas.
Sim, seu patrão começa a tomar simpatia por Herr Hitler. E tenta costurar uma aproximação da diplomacia britânica com o partido do alemão. Em meio a isso, Stevens admite que Darlington possa ter se equivocado, como por exemplo quando mandou demitir duas criadas judias e proibiu a entrada de judeus na mansão. Stevens sempre enxergou bons sentimentos no adorado patrão. Mas, à medida que a viagem avança, começa a aceitar a ideia de que o nobre exagerou na dose ao aderir ao nazismo e negociar com os mensageiros de Hitler. A história, o mordomo nos conta, condenou Lord Darlington ao esquecimento e a uma morte solitária, não sem antes ter este sido processado e condenado como espião.
A viagem prossegue, e essas divagações geram também uma insegurança. Terá mesmo Miss Kenton manifestado desejo em voltar a trabalhar na mansão? Ele relê a carta inúmeras vezes e deixa de estar certo disso. Nesse ponto, vão surgindo as histórias vividas com a governanta. Uma relação que claramente foi de atração mútua. Mas que o cabeça-dura do mordomo não compreendeu. Pior. A cada pequena manifestação de carinho e atenção que lhe foi dirigida enquanto conviviam na mansão ele armava um cerca elétrica para se proteger.
Stevens é um sujeito com graves problemas emocionais. E as cenas derradeiras desse belo romance escancaram que se esconde por trás de tanta formalidade a dureza de um caráter que parece inabalável. Não vou fazer spoiler, porque o fim é mesmo incrível e arremata o conjunto da obra. Existem livros que começam de forma arrebatadora. Este, te conduz vagarosamente para um final arrebatador.
Pronto, já sei quem é Kazuo Ishiguro. E você, já o conhecia? Vai ler? Já leu? Deixe seu comentário. E vá atrás do filme, porque vale a pena assistir.
P.S.: a nova edição brasileira de Vestígios do dia traz de brinde um conto até então inédito em livros. Trata-se de Depois do anoitecer, uma história de assombro, que me lembrou os ótimos contos de André Balaio, em Quebranto, que li recentemente.
P.S. 2: Na foto, Almirante Nelson, na Trafalgar Square.
Acho o filme belíssimo. A resenha despertou o interesse pelo livro. Não
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O livro é ainda melhor. Tem um ritmo muito interessante, ditado pelo jeito de pensar do mordomo Stevens. Vale a leitura.
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