Nunca conseguimos sair da Patuscada, o bar da editora Patuá, com apenas um livro na mão. Fomos algumas vezes para lançamento de amigos, ou para comprar algo específico, mas sempre voltamos com pelo menos o dobro de livros da intenção original – culpa de Eduardo Lacerda, editor e barman. Seja na fila de autógrafos ou na boca do caixa, ele sempre dá um jeito de indicar outros títulos ao mesmo tempo em que fecha uma conta e abre mais uma cerveja. Foi assim que Por cima do mar veio parar nas nossas estantes, o primeiro romance de Deborah Dornellas, que acaba de receber o Prêmio Casa de las Americas de Cuba – e forte possibilidade de se tornar finalista de outras premiações este ano.
Por cima do mar é essencialmente uma narrativa afro-atlântica, que bebe em elementos da história, memória e geopolítica do último meio milênio para relembrar como a periferia brasileira e as dinâmicas sociais do Brasil são resultado direto da diáspora africana no período colonial. Primeira pessoa de sua família a ir à faculdade, a narradora Lígia Vitalina, no entanto, constrói esse entendimento no dia a dia de invisibilidades, pequenas e grandes violências.
Lígia Vitalina, ou Vita, mora na periferia de Brasília, filha de um dos operários que ajudou a construir a cidade e que, como milhares de outros, se viu sem-lugar assim que as obras acabaram. Instalados inicialmente na ocupação Vila IAPI, em determinado momento a família é removida junto com os seus vizinhos para mais longe ainda, no âmbito da chamada Campanha de Erradicação de Invasões – “invasões” era como em Brasília se nomeavam as favelas; da tal campanha, de sigla CEI, surgiu o assentamento posteriormente chamado de Ceilândia, no fim dos anos 1960.
É uma Lígia já adolescente que sente na pele os efeitos desse apartheid institucionalizado, embora nunca admitido: em 1986, a personagem testemunha a batida policial a um clube popular iniciada com a famigerada ordem “branco sai, preto fica”. Lígia ficou; sua amiga Docas, um pouco mais clara (quase branca ou quase preta?), foi colocada pra fora.
Deborah entrega o livro para Lígia, que aparece como a escritora daquela espécie de diário presente e retrospectivo. E Lígia sabe exatamente que sua presença naquele “branco sai, preto fica” é resultado direto da viagem forçada feita por sua trisavó num navio tumbeiro, sequestrada em Angola ainda criança para ser escrava no Brasil. A Lígia adulta, já acadêmica, apaixona-se por um angolano e faz a viagem de retorno em condições completamente diferentes, mas nem por isso destituídas de carga. Encontrará do outro lado do Atlântico não apenas o amor, mas um país também destruído por um processo de colonização baseado essencialmente no racismo.
A escrita, feita mais de fragmentos do que de narrativas, é a de alguém que sabe exatamente o peso que carrega. Em um dos capítulos mais impressionantes do livro, Lígia fala sobre a invisibilidade, e de como esse artifício é às vezes também estratégia de sobrevivência:
“Meu corpo fluido se acomoda dentro de roupas invisíveis e nelas me locomovo. Levanto da cama devagar e em silêncio, porque o invisível tem de ser também silencioso (…). Olho minha imagem no espelho. Só a cabeça e uma parte do colo aparecem na moldura. Sete buracos, olhos escuros, sobrancelhas arqueadas, cílios muito pretos e compridos, lábios grossos, cor de ameixa, ,pele escura, um tom entre o marrom-camaleão e o café torrado. Será que sou invisível mesmo me parecendo com um animal assustado de desenho animado? Mesmo que minhas orelhas sustentem brincos visíveis, que balançam quando movo o pescoço? (…) objetos concretos que eu convocava para me ajudarem a domesticar a minha visibilidade.”
Por cima do mar vai na linha das obras contemporâneas que vêm atacando os mitos da democracia racial e da meritocracia, esses irmãos siameses, ao expor como os processos históricos iniciados há séculos influem diretamente sobre as vidas das pessoas de hoje. Tudo isso numa edição maravilhosa da Patuá – a melhor -, ilustrada com desenhos da própria autora e projeto gráfico de Beatriz Agnelli. Um presentão da editora para os seus leitores. ❤
Se interessou? O livro está a venda na internet direto com a editora Patuá ou no bar Patuscada, na Vila Madalena.
Barbaridade invisível
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