Desesterro dói.
E se cedo ao impulso de dizer isso assim na lata, logo no começo da resenha, é em reconhecimento ao poder que esse livro tem de deixar marcas profundas no leitor. O feito é ainda mais notável em se tratando do romance de estreia de uma escritora jovem, e que já está fazendo o circuito dos mais importantes prêmios literários brasileiros: com este livro, Sheyla Smanioto venceu o Prêmio Sesc de Literatura em 2015 (o que possibilitou a publicação pela Record), foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2016 na categoria autor estreante – menos de 40 anos, e segue no páreo do Jabuti, cujo resultado será divulgado até o fim do ano.
Fico descaradamente na torcida, pois considero Desesterro um dos textos mais interessantes que li desde sempre. É um daqueles livros que têm a rara capacidade de aliar um estilo ousado, instigante em sua ligeireza, e poético sem pieguice. Ao mesmo tempo, esse estilo sustenta uma história redonda, contada de forma não linear, porém sem artificialidade. É também um livro conscientemente político, ecoando alguns dos temas mais relevantes de nosso tempo, mas sem resvalar no panfletarismo. Em resumo, um combo completo e destruidor.
Desesterro narra a história de quatro gerações de mulheres de uma mesma família, com origem na fictícia cidade de Vilaboinha, no interior do Nordeste. Penha, a matriarca, é considerada louca; Cida, sua filha, morreu no parto. Fátima, a neta, é vítima constante de abuso conjugal; e Scarlett, a bisneta, herdará todo esse histórico de miséria e desencanto. A irmã de Fátima, nascida em no parto que matou sua mãe, é uma menina sem nome, que se protege alheando-se de seu entorno. Em todos os sentidos, só lhes resta fugir – pra dentro de si, para dentro da loucura, ou literalmente para outro lugar.
A violência e a miséria são as maiores constantes na vida destas mulheres. Para denunciá-las, Sheyla as naturaliza, como se fossem um dado da paisagem, um fato do tempo e do espaço, como o horizonte ou como a chuva. Em dado momento, Penha diz a Fátima: “Sua mãe está morta? E você está o que, viva?”. Não há ironia nessa frase. Morte e vida, para essas personagens, são uma coisa só.
A natureza, junto com sonhos e crendices, tem um papel fundamental na construção de um ar místico na narrativa de Desesterro, até porque a própria terra se irmanará às mulheres como ente violado. Isso acontece quando Fátima resolve deixar Vilaboinha para se estabelecer na periferia de São Paulo. Acomodada em um barraco construído com papelão e latas, tentando esquecer o passado e construir uma nova identidade, ela vê sua pretensão ruir quando uma grande escavação começa no bairro, revirando a terra e trazendo à superfície sinais que a lembram de onde vem.
A palavra desesterro, explica Sheyla, é um neologismo criado para dar conta desse desterro ao contrário, dessa volta forçada ao lugar de origem. Em um dos encontros com os finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura, ela contou que queria tratar da imigração nordestina não como um problema demográfico, mas a partir dos sonhos, expectativas e histórias de quem vem de longe, carregado de memórias.
Estruturalmente, o livro é feito de capítulos curtos, alguns baseados em diálogos rápidos, intercalados com belos aforismos poéticos…
CORPO É: floresta tímida.
LOUCURA É: a cidade contra.ou
LER É: devorar a fome dos outros.
… o que torna a leitura rápida e permeada de uma vontade louca de sair marcando o livro inteiro.
Em meio a toda essa intensidade textual, a escritora ainda consegue nos oferecer um final surpreendente, quase cinematográfico, que faz o leitor pensar em retrospectiva sobre toda a história.
Uma estreia incrível, de uma escritora que entrou como um foguete no rol das favoritas do Lombada.
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PS: a imagem em destaque é da tela Favela I, de Lasar Segall, fotografada no museu dedicado ao artista na Vila Mariana, São Paulo.
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